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  • Foto do escritorRafael Torres

Rachmaninoff - Os Études-Tableaux

Alguém afirmou certa vez que O Cravo Bem-Temperado, de Johann Sebastian Bach, representa o "Velho Testamento" da literatura para piano, enquanto as 32 Sonatas de Ludwig van Beethoven, o "Novo Testamento". Isso faz dos Études-Tableaux de Sergei Rachmaninoff o quê? Eu pouparia todas as obras de analogias litúrgicas. Até porque só temos duas. Mas creio que se existe uma obra grande a dar continuidade às duas anteriores, foram os Études-Tableaux.


Sergei Rachmaninoff
Sergei Rachmaninoff.

São 17 peças no total, divididas assim:

  • 8 Études-Tableaux que compõem o primeiro livro, Op. 33

  • 9 Études-Tableaux que formam o segundo livro, Op. 39

Études-Tableaux (Estudos-Quadros) são peças para piano com características das duas coisas: são difíceis e complexos o suficiente para serem estudos; e alusivos e coloridos o suficiente para ser chamados de quadros. O compositor não deu títulos às peças, preferindo que o ouvinte fizesse sua própria pintura na imaginação, mas ele foi um pouco mais elucidativo com os cinco Études-Tableaux que o compositor italiano Ottorino Respighi orquestrou nos anos 30.


Acontece que Serge Koussevitzky, regente russo da Sinfônica de Boston, pediu que ele selecionasse 5 Études para Respighi orquestrar. Rachmaninoff escolheu e deu-lhes títulos, como "A Feira", "Chapeuzinho Vermelho", "O Mar e as Gaivotas".


Os Estudos que tiverem nome e que tiverem sido orquestrados terão esses aspectos comentados no olhar individual que daremos a cada. No final, indico algumas gravações especiais da série completa, como sempre, mas no decorrer do texto, indicarei gravações de Estudos individuais.


 

Études-Tableaux Op. 33


Originalmente, o compositor tinha 9 Estudos para o primeiro livro, mas publicou apenas 6. Dos não publicados, um foi revertido no Étude Nº 6 do caderno seguinte, o Opus 39. Os outros dois foram reinseridos no primeiro caderno depois da sua morte. O resultado é que até hoje se faz confusão quanto aos números.


Rachmaninoff os compôs em 1911, na casa chamada Ivanovka, em Tambov, Rússia - o compositor só largaria a Rússia na revolução de 1917, mas já fazia sucesso internacional tanto como compositor quanto como pianista e regente. Ivanovka era a residência de uma parte aristocrática da família de Rachmaninoff, a família Satin, da qual a filha, Natalia Satina, casara-se com ele em 1902.


Os Études-Tableaux Op. 33 podem ser tocados juntos, como um caderno, ou individualmente.



Nº 1, em Fá Menor - Allegro non troppo


O primeiro estudo já mostra criatividade, com o baixo quase todo em staccato e a melodia em legato, no contratempo. É música contraintuitiva. Deve ser tocada sem pedal, e o legato é obtido no dedo.


Aos 2m22, o coda, em pianíssimo, é arrepiante.


 

Nº 2, em Dó Maior - Allegro (2m58s)


Um dos muitos muito conhecidos, esse estudo traz uma atmosfera fantástica. Em geral, reina a paz, mas temos momentos de conflito. A mão direita cruza várias vezes a esquerda para atingir notas mais graves, atingindo um discreto clímax aos 3m52s. Depois dele, o comportamento da música muda, ficando obsessivo e um tanto confuso, cada vez mais agudo. Tudo premeditado pelo mestre.


O coda é todo montado sobre um trinado.


Gravação recomendada - Vladimir Horowitz


 

Nº 3, em Dó Menor - Grave (5m21s)


Esse cavernoso estudo é um dos que foram publicados postumamente - lembre-se, Rachmaninoff só publicou 6, mas hoje se tocam 8.


Ele começa com uma atmosfera sombria, até ameaçadora. Perceba os sinos (o compositor os adorava) desde o começo.


Este estudo tem um dos momentos mais sublimes da escrita pianística. Tão sublime, que Rachmaninoff o reaproveitou no Segundo Movimento do seu Concerto para Piano Nº 4. Aos 7m56s, ele cai em Dó Maior. Ele vai, então, criando tensão com um cromatismo ascendente (a partir de 9m23s) e desemboca, aos 9m37, nessa lírica melodia.


Gravação recomendada - Yuja Wang, em seu recital gravado em Berlim, faz uma execução monstruosa da peça.


 

Nº 4, em Ré Menor - Moderato (11m12s)


Peça fantástica. A alternância entre duas notas, dobradas em terças ou sextas, uma ideia simples, vai ganhando corpo e, quando vemos, estamos no clímax. Agora, é um clímax criado todo nas notas agudas (14m09s). A peça é sofisticada e soa sofisticada, embora curta.


Gravação recomendada - Vladimir Sofronitsky é brilhante, aqui.


 

Nº 5, em Mi Bemol Menor - Non allegro - Presto (14m52s)


Uma música elusiva, que parece querer escapar. Presto significa bem rápido. É uma obra difícil à beça.


 

Nº 6, em Mi Bemol Maior - Allegro con fuoco (16m32s)


Esse estudo foi um dos que Ottorino Respighi orquestrou. Rachmaninoff disse tratar da cena de uma feira, com sua vivacidade, seu barulho e sua alegria. O nome da versão orquestral ficou sendo "A Feira".


 

Nº 7, em Sol Menor - Moderato (18m23s)


A mão esquerda e a direita se cruzam habilmente. É um estudo melancólico, que poderia ser um dos mais conhecidos de Rachmaninoff, pois tem uma melodia cativante, sua harmonia característica e um belo clima de nostalgia, que depois (20m48s) se transforma em terror! É uma peça de extrema riqueza. Às vezes uma nota solta, ou um staccato contribuem para a atmosfera lúgubre.


Devo dizer que, no coda (22m02s), Rachmaninoff faz uma homenagem a Chopin, inserindo quase literalmente o coda da Balada Nº 1.


Gravação recomendada - Cristina Ortiz, a pianista baiana toca com uma sensibilidade sem fim, em andamento não muito lento. Apenas observe que, no Spotify (e possivelmente em outras plataformas) ele aparece erroneamente como Étude-Tableau Op. 33, Nº 3.


 

Nº 8, em Dó Sustenido Menor - Grave (22m28s)


É um estudo agitado e turbulento. Repare aos 22m37s, quando ele parece fazer uma homenagem ao seu próprio Prelúdio, Op. 3 (aquele que todo mundo conhece). A música existe de uma vasta alternância entre o tom maior e o menor.


Gravação recomendada - Sviatoslav Richter. O pianista ucraniano, se gravava algo, ficava para a história. Aqui, o impressionante é a serenidade dele ao tocar peça tão complicada. No Spotify aparece como Étude-Tableau Op. 33, Nº 9.


 

Études-Tableaux, Op. 39


Escritos até 1917 e publicados no mesmo ano, este caderno foi a última coisa que Rachmaninoff escreveu antes de sair da Rússia. Costuma ser mencionado que o compositor estudou a obra de seu querido amigo Alexander Scriabin (falecido em 1915) e seu estilo ao piano. O caderno é, também, vagamente mais conhecido, graças aos seus Études Nos. 2, 5 e 6.


(Sobre Scriabin, embora não tenha deixado gravações, era um pianista excepcional. Um relato da época dizia algo como: se Rachmaninoff era a perfeição técnica e a precisão mecânica, Scriabin era o colorido, o "quente", o "frio". O que, enfim, trazia características não musicais à música - ele era sinesteta. Rachmaninoff era fascinado por ele e ficou muito abalado quando morreu.)



Nº 1, em Dó Menor - Allegro agitato


Um estudo hostil, sinistro. Altamente cromático. A escrita é meio líquida, lembra água. Se fosse uma peça de Ravel, seria uma boa peça de Ravel. É um estudo bastante avançado, difícil. E, além de tudo, mostra que esse grupo de Études-Tableaux será ainda mais intrincado, complexo e atormentado que o anterior.


Gravação recomendada - Sergei Babayan, no seu disco de recital de Rachmaninoff que está simplesmente incrível.


 

Nº 2, em Lá Menor - Lento assai (3m03s)


Esse Étude foi orquestrado por Respighi, e com muita competência. A evocação aqui é como sugere o nome que Rachmaninoff propôs ao italiano: O Mar e as Gaivotas.


Observe quem aparece no começo, no baixo. O Dies Irae, de que falamos no artigo sobre a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini. É só uma insinuação do tema.


O estudo é todo ermo, vazio e cinzento, como uma praia do Báltico, com exceção da seção central (agitada). Mas é lindo e magistralmente escrito.


Gravação recomendada - Sergei Babayan. O pianista armeno gravou apenas alguns dos Études-Tableaux, de um e de outro livro, mas tudo com muita fineza, delicadeza e controle sonoro.


 

Nº 3, em Fá Sustenido Menor - Allegro molto (10m04s)


Essa peça é incrivelmente complexa, tanto na sua escrita, quanto em sua estrutura harmônica. Sua primeira seção, agitada e martelada, dá lugar, às vezes, a episódios mais líricos.


 

Nº 4, em Si Menor - Allegro assai (12m37s)


A Gavota era uma dança francesa em voga no Barroco, 200 anos antes de Rachmaninoff. Mas ele escreveu essa sensacional, repleta de charme e conteúdo harmônico.


Gravação recomendada - Evgeny Kissin.


 

Nº 5, em Mi Bemol Menor - Appassionato (16m15s)


Esse é o mais famoso de todos os Études-Tableaux. É uma obra prima do romantismo tardio, apaixonada, fervorosa. Repare no tema principal, que começa já na primeira nota, tão assertiva, e é uma longa frase (vai até 16m51s e já engata na frase resposta).


A partir de 18m33s, temos uma construção de tensão absurda, com cromatismos, acordes diminutos e de dominante. Vai crescendo, crescendo, até a brilhante e dramática reaparição do tema, dessa vez na parte grave do teclado, na mão esquerda (19m06s).


Depois, ele vai se acabando lentamente, morrendo aos poucos. Não é à toa que público e pianistas gostem tanto dessa música, uma viagem emocional intensa, quase exaustiva.


Gravação recomendada - Vladimir Horowitz tocava isso como ninguém.


 

Nº 6, em Lá Menor - Allegro (21m31s)


Esta é outra das que Respighi orquestrou, com Rachmaninoff sugerindo chamá-la de "Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau". Na versão para piano, é uma das obras mais difíceis de se executar, porque é muito rápida e tem saltos insanos na mão esquerda.


Uma versão primordial, hoje perdida, dessa peça foi considerada para ser o 4º Étude do livro anterior, o Op. 33. A versão que conhecemos hoje foi revisada e adequada ao linguajar do Op. 39.


Gravação recomendada - Yuja Wang, no seu juvenil álbum Fantasia. É espantosa a leitura da peça como um todo, o crescimento das tensões e os apogeus.


 

Nº 7, em Dó Menor - Lento lugubre (24m16s)


Outro que Ottorino Respighi orquestrou, e Rachmaninoff chamou a versão orquestral de "Marcha Fúnebre". É uma música altamente evocativa, com sons de sinos e uma marcha implacável que começa pelo meio. Também trabalha a construção de tensão de maneira impecável.


Gravação recomendada - Sviatoslav Richter.


 

Nº 8, em Ré Menor - Allegro moderato (31m58s)


Este estudo relativamente pouco conhecido e tocado é o meu favorito. Aqui, Rachmaninoff atinge o transcendental, com uma música encantada do começo ao fim. Seu tema principal aparece já de cara, em quintas. O ápice da obra é sublime (34m10s). Mas tem uma coisa. Tem que ser na versão de Volodos. Simplesmente ninguém toca e jamais tocou como ele.


Gravação recomendada - Arcadi Volodos, no seu disco gravado ao vivo no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Para mim, esse pequeno momento, capturado por microfones, é um dos pontos máximos da história da música gravada.


 

Nº 9, em Ré Maior - Allegro moderato. Tempo di marcia (35m13s)


Um estudo alegre e até otimista encerra o caderno. Um tanto barulhento, mas muito musical. Respighi também orquestrou esse, e o chamaram de "Marcha Oriental". É uma música muito apropriada para encerrar o grupo. É curtinho.


Gravação recomendada - Sviatoslav Richter.


 

As orquestrações de Respighi


Ottorino Respighi era um compositor romântico tardio do começo do século XX (assim como Rachmaninoff). É muito conhecido pelos seus poemas sinfônicos que formam a Trilogia Romana: Pinheiros de Roma, Fontes de Roma e Festivais Romanos, todos muito tocados até hoje. Koussevitzky encomendou a orquestração de 5 dos Études-Tableaux, que seriam escolhidos pelo próprio Rachmaninoff. Respighi respeitou tudo que tinha nas partituras, bem como os nomes que Rachmaninoff propusera. Ele apenas organizou as 5 peças de forma a criar uma obra coesa. Ficou assim:

  1. "O Mar e as Gaivotas" - Op. 39 Nº 2

  2. "A Feira " - Op. 33 Nº 6

  3. "Marcha Fúnebre" - Op. 39 Nº 7

  4. "Chapeuzinho Vermelho" - Op. 39 Nº 6

  5. "Marcha Oriental" - Op. 39 Nº 9

Respighi era exímio orquestrador, e executou a encomenda com bom gosto e brilho. Quando ele entrega uma linha ou acompanhamento a determinado instrumento, você sente que não poderia ser nenhum outro.


Gravação recomendada - A melhor gravação para mim é a de Eiji Oue com a Sinfônica de Minessota, com as Danças Sinfônicas, estas, compostas e orquestradas por Rachmaninoff.


 

Gravações recomendadas


Vladimir Ashkenazy - A gravação de referência do ciclo. Russo como o compositor, Ashkenazy deve ser o maior especialista do mundo em sua obra. Gravou (sempre de forma excepcional) os Prelúdios, as Sonatas, as peças para dois pianos (com André Previn), os Concertos (diversas vezes) e a obra sinfônica, já que ele é maestro, também. A gravação dos Études-Tableaux, de 1973 (Op. 39) e 1977 (Op. 33), é definitiva. Pelo menos a maioria das peças nunca foi superada. Pianista lendário, é notória sua sonoridade e sua capacidade de dar colorido às peças.


John Ogdon - Ogdon foi um pianista inglês da segunda metade do século XX. Sempre chamado de "gigante gentil", tinha uma técnica avassaladora. Ganhou junto com Ashkenazy o Concurso Tchaikovsky de 1962, em Moscou (a mais prestigiada competição pianística do mundo). A partir de 1973 sua saúde mental ficou complicada (transtorno bipolar), levando-o a vários episódios psicóticos. Gravou os Études-Tableaux 2 vezes, uma antes do colapso, em 1971, e outra depois, em 1988. Independentemente de qual for a que você escutar, o resultado é ambíguo: ele tocava de modo pesado, fosse isso bem-vindo ou não; errava muito; não era muito sutil; mas era muito musical; tecnicamente arrebatador; e seu som era poderosíssimo. Abaixo você escuta a versão de 1988. A de 1971 foi lançada da coletânea Great Pianists of the 20th Century.


Boris Giltburg - A gravação mais moderna dentre as que recomendo aqui, é de 2016 e 2017. Giltburg também é um especialista em Rachmaninoff, e toca tudo com propriedade, se não com muita personalidade.


Nikolai Lugansky - Lugansky toca sem se arriscar, adotando andamentos conservadores, em que sabe que tocará com facilidade. É um pianista excepcional, temos que admitir. Suas gravações são de 1994.



 

E, como sempre, o encorajamos a comentar. Nosso dever é difundir a música clássica, e não sabemos exatamente se estamos conseguindo. Às vezes parecemos rádio-amadores, transmitindo para as galáxias (possivelmente) solitárias. Seu comentário faria muita diferença. Pode ser de pirraça, de elogio, de desabafo, de conversa. O que for. Agradecemos. Algumas postagens importantes.


Uma opção para o dilema de tocar ou não Música Russa nos concertos hoje em dia.



Aqui, 10 Livros Sobre Música Clássica


Veja aqui:



As Melhores Orquestras do Mundo:



Perfil da pianista portuguesa Maria João Pires, postagem da nossa correspondente prodígio lusitana Mariana Rosas, do Blog Pianíssimo (www.pianissimo.ovar.info).


Perfil da violinista francesa Ginette Neveu, falecida aos 30 anos em um acidente de avião, em 1949.


Perfil do pianista brasileiro Nelson Freire, considerado um dos maiores dos tempos modernos e falecido em 2021.


Veja também:


Músicas Fofinhas



E veja nossas famosas listas:



Música Popular Brasileira:



E análises de obras



Compreendendo o Maestro:


Saiba, aqui, tudo sobre os Argonautas, um quarteto de MPB Clássica e Contemporânea Autoral Cearense.


Papo de Arara (Entrevistas)



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