Quando, em 1928, Maurice Ravel compôs o seu Bolero, ele já era um compositor famoso e amado pelo mundo inteiro. Sua intenção, assim como em La Valse, era escrever um balé. Mas novamente a obra se tornou muito mais conhecida como uma peça sinfônica.
Se pararmos para analisar, no sentido estritamente musical, a peça não deveria funcionar despida da dança. É uma simples melodia repetida incessantemente pela orquestra, que nunca traz nenhuma novidade. A não ser na orquestração. Ela cresce e cresce e cresce. Ouvimos vários instrumentos destacados como solistas e várias combinações. Até a apoteose final, em que a orquestra toda está dominada pelo ritmo do bolero espanhol.
Está marcardo Tempo di bolero - Moderato assai, que significa muito moderado. A maioria dos regentes a toca mais rápido do que o concebido por Ravel. Aliás, temos duas indicações conflitantes do que seria o tempo ideal para o compositor: a partitura atribui 72 bpm para cada semínima, o que resultaria em um tempo de pouco mais de 14 minutos; e a gravação que Ravel fez tem 17 minutos. Lembrando que originalmente ele atribuiu 66 bpm à semínima, o que dá realmente os 17 minutos. Depois é que foi mudado, em edições posteriores, para 72.
Eu sempre achei mais impressionantes as gravações mais lentas. Especialmente as que conseguem ser excitantes sem correr. O controle que o regente tem que ter é absurdo. Porque a orquestra quer correr. Se aumenta a dinâmica e a textura orquestral, o natural é que aumente também a velocidade. Mas não se pode fazer isso: em nenhum momento a partitura indica variação de tempo. O maestro tem que ficar inabalável.
A caixa clara, por exemplo, toca durante todos esses minutos, a seguinte célula rítmica:
Para um percussionista é facinho tocar isso, mas por 17 minutos? E sem correr? Torna-se um desafio.
A orquestra que ele pede é a seguinte:
1 Flautim
2 Flautas (1 alternando para Flautim)
2 Oboés (1 alternando para Oboé d'Amore)
1 Corne Inglês
2 Clarinetes (1 alternando para Clarinete em mi bemol, chamado Requinta no Brasil)
1 Clarinete Baixo (Clarone)
3 Saxofones
2 Fagotes
1 Contrafagote
4 Trompas
4 Trompetes
3 Trombones
1 Tuba
3 Tímpanos
Percussão (Gongo, Pratos, 2 Caixas Claras, e um Bumbo Sinfônico)
1 Celesta
1 Harpa
Violinos 1
Violinos 2
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
A peça começa com esse ritmozinho tocado pela caixa, com golpes pizzicato das cordas. É só o acompanhamento. A melodia surge logo na flauta. E vai passar por diversos instrumentos, principalmente das madeiras: o clarinete, o fagote, o saxofone, o flautim. Sempre num incessante crescendo.
Quando eu era pequeno lembro de ter perguntado aos meus pais de quem era o Bolero de Ravel. Porque o nome já vem assim. Bolero de Ravel. Depois, quando conheci outras peças dele, sobretudo Daphnis et Chloé, fiquei impressionado como um mesmo compositor podia escrever as duas peças. Daphnis é uma obra prima de sutileza, parece que nunca repete uma nota sequer. O Bolero é essa coisa quase irritante e infinitamente repetitiva. Depois a gente se acostuma e aprende a apreciar justamente a repetição, o movimento quase sexual da obra.
Por falar nisso, ela foi encomendada, como já falei, como um balé, por Ida Rubinstein, que a dançou na estreia e causou alvoroço. Parecia realmente sexual, a intenção da música e da dança. Aos poucos a peça foi se desvencilhando do balé e ficando mais conhecida e tocada em salas de concerto.
Isso se dá porque, embora seja atípica de Ravel, a peça se tornou a mais conhecida do compositor. Ele se irritava: "textura orquestral sem música"... Pode-se dizer que a obra se tornou mais famosa que o compositor. Saiu do controle.
Mas a música é insistente. Tanto em sua estrutura, quanto em sua carreira. Permanece como uma das melodias mais reconhecíveis da história da música clássica, e por quase um século vem sendo gravada e executada em tudo que é disco e concerto.
Particularmente, repito que aprendi a apreciar a insistência da peça, o ostinato crescente que, no fim, explode, como se estivesse, antes, preso numa gaiola.
Gravações recomendadas
- Daniel Barenboim, com a Orquestra de Paris - Essa é uma das mais famosas gravações. O controle de Barenboim e dos músicos é extraordinário. Foi gravada em 1981.
- Jean Martinon, com a Orquestra de Paris - Uma versão mais rápida com a mesma orquestra da gravação anterior. Martinon faz uma interpretação famosamente excitante, quase descontrolada, da música. É de 1975.
- André Cluytens, regendo a Orchestre de la Société des Concerts du Conservatoire - De 1963, essa versão é excepcional. Não é polida como costumamos ouvir hoje, mas tem um temperamento efusivo que também não é mais comum.
- Herbert von Karajan, regendo a Filarmônica de Berlim - De 1987, essa gravação também é muito famosa. O som é limpo, mas a selvageria está lá.
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