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  • Foto do escritorRafael Torres

Dvorák - O Concerto para Piano - Análise

O compositor tcheco Antonín Dvořák (1841-1904) foi um dos maiores do romantismo tardio. Sua obra é imensa e é impressionante pensarmos que ele escrevia Sinfonias, Concertos, Poema Sinfônicos, Música para Piano, Música de Câmera, Ópera e Música Sacra. Tudo com muito bom gosto e brilho, se nem sempre com o mesmo sucesso.


Sucesso, ele teve. Já li que a música mais tocada no ano de 1900 era sua Humoresque Nº 7, do livro 8 Humoresques, Op. 101, de 1894. Mas me refiro ao respeito e consideração pelas suas obras, que foram tratadas durante décadas como músicas apenas bonitinhas, mas sem refinamento e sem profundidade.


Antonín Dvořák (1841-1904)
Antonín Dvořák (1841-1904)

Isso se deve ao fato de que ele tinha muita facilidade melódica, jorrando melodias inesquecíveis aos borbotões. Se, por um lado, isso lhe garantiu sucesso em vida, posteriormente foi problemático, porque os críticos (podemos chamar de haters?) adoram filosofar que, se uma obra tem muitas melodias bonitas, ela é "fácil" demais, "superficial". A música "boa" tem que ser difícil, dissonante, de melodias escondidas. Acho que esse preconceito está caindo. Mas demorou.


Atualmente, de suas 9 Sinfonias, as últimas 6 são muito tocadas, sendo que as últimas 3 são realmente populares. E a última delas, por fim, talvez seja a sinfonia mais amada pelo público, a Sinfonia Nº 9 "Do Novo Mundo". As outras são a Sétima e a Oitava.


Dvořák escreveu três concertos, nunca mais de um para o mesmo instrumento. O Concerto para Piano em Sol Menor, Op. 33, de 1876, que nunca foi muito bem aceito, embora seja um concerto romântico de altíssima qualidade; o Concerto para Violino em Lá Menor, Op. 53, de 1879, que os violinistas gravam depois de já ter gravado 2 vezes os concertos de Brahms, Mendelssohn, Tchaikovsky e Beethoven; e o Concerto para Violoncelo em Si Menor, Op. 104, de 1895, este, sim, considerado uma obra magistral - talvez até o maior concerto para violoncelo já escrito.


 

O Concerto para Piano


Vamos fazer uma análise do primeiro deles, o Concerto para Piano. E vamos entender por que ele não é tão tocado. É seu Op. 33, em Sol Menor, e foi composto em 1876.


Desconhecemos as motivações para o compositor escrever o concerto. Não parece que algum pianista ou algum barão europeu o tenham encomendado um.


A modesta orquestra pedida contém 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos, cordas (primeiros violinos, segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos) e o piano solista.


O Concerto estava pronto e orquestrado em 14 de setembro de 1876 e a esrtreia foi em março do ano seguinte, com a Orquestra Filharmonie, do Teatro Provisional de Praga, regida por Anton Čech, com Karel Slavkovsky ao piano.


Dvořák chegou a dizer-se incapaz de criar um concerto com um piano virtuose, em que o piano batalhe contra a orquestra, e que deveria pensar em outras coisas... Que seja dito que o senso comum prega que Dvořák era um bom pianista, mas estava longe de ser um virtuose do calibre de Liszt, Chopin ou mesmo Brahms. Mas era um compositor nato. É perfeitamente possível que ele soubesse exatamente o que estava fazendo.


De qualquer forma, o pianista e pedagogo tcheco Vilém Kurz reescreveu com mais brilho a parte do piano. A primeira tentativa de Kurz foi tripudiada pela crítica, que dizia que parecia que o concerto era para "duas mãos esquerdas" (é que uma parte de piano bem escrita, leva em consideração as mãos, os polegares). Ele trabalhou de novo e melhorou a parte - lembrando que ele só mexeu na parte do piano - e essa versão é que ficou sendo a mais tocada.


No álbum de Sviatoslav Richter e Carlos Kleiber, que contém a gravação abaixo, a nota diz que é justamente por isso que o concerto é pouco tocado. A versão de Kurz é difusa, não adiciona nada de muito musical e parte do pressuposto de que a versão original é defeituosa. Richter e Kleiber, isso nos anos 70, empreenderam gravar a versão original com a Orquestra Estadual Bávara de Munique. Foi o começo da restauração da reputação da obra. Os poucos pianistas que tinham a obra no repertório, mudaram da versão de Kurz para a original rapidinho. E vários o incorporaram ao repertório!


O veredicto é que a obra não tem os artifícios típicos de uma parte de piano. Longos arpejos, oitavas poderosas e ligeiras alternâncias em terças não estão aí. Isso o torna, na verdade, mais difícil de tocar, pois o pianista não está habituado a uma escrita tão crua. Foi preciso Sviatoslav Richter gravá-lo com convicção para mostrar-nos a beleza melódica e harmônica dessa peça tão embebida de melancolia.


Abaixo, nosso vídeo-áudio-guia, com a Orquestra Estadual Bávara de Munique, regida por Carlos Kleiber, com Sviatoslav Richter ao piano.



Concerto Para Piano e Orquestra em Sol Menor, Op. 33


1º Movimento - Allegro agitato (0m0s)


Exposição


Começamos já com a apresentação do Primeiro Tema nas cordas, digna de Félix Mendelssohn (vide sua Sinfonia Nº 3 e seu Oratório Paulus). Ela escala e se torna tensa, ameaçadora (47s). Ficamos a sentir falta da percussão e nos perguntando se um Dvořák mais maduro a teria incluído. O fato é que não. O compositor tem outros planos para esse concerto. A partir dos 54s a escrita polifônica é notável e muito bem realizada.


Repare, em 1m03s, em como os sopros vão entrando de maneira sutil e gradual - na verdade, eles já haviam sido ouvidos, mas como coadjuvantes. Temos primeiro a trompa, depois o clarinete, depois a flauta. Aos 1m23s ouvimos o Segundo Tema, no clarinete e fagote, de caráter pastoral. Os violinos o repetem (1m32s) em tom menor, com mais drama. Não deixe de notar uma linda aparição do Primeiro Tema no oboé, em 1m59s. Ele chama o piano.


O piano entra tocando o motivo do Segundo Tema (2m15s) (não literalmente, mas em acordes diminutos). Note que, a partir de 2m29s, a orquestra (depois o piano) começa a fazer uma subida de três notas que vai se transformar em uma referência ao Primeiro Tema (2m41s).


Aos 3m30s o piano restaura o Primeiro Tema, mas em tom maior, com muito menos drama e mais nobreza. A orquestra responde (3m38s) também de maneira diferenciada. Eles travam um duelo sobre esse tema nos próximos minutos até que vão relaxando e dando lugar ao Terceiro Tema (5m03s), que tem um caráter de Século XVIII - Classicismo, Mozart.


Aos 5m47s eles começam a trabalhar um pouco o Terceiro Tema: a orquestra inicia e o piano faz pequenas cadências, em um momento adorável.


Desenvolvimento


O Desenvolvimento tem início aos 6m51s, da maneira mais súbita possível, com um súbito forte do piano. Eles começam trabalhando o inverso, primeiro o Terceiro Tema, atribuindo-lhe ares tensos e evocativos. Há momentos de duelo entre o piano e a orquestra, nessa parte eles estão em conflito.


Até que, aos 7m46s surge o Primeiro Tema, orgulhoso, na orquestra - esse tema sempre foi dela. Ele também é devidamente desenvolvido até um extraordinário diminuendo (8m23s), quando ela o entrega ao piano. Agora, o piano passa novamente a dialogar de maneira educada com a orquestra.


No auge do desenvolvimento, o compositor solta sua criatividade - a de Dvořák era infinita - e, às vezes, tudo o que ouvimos de familiar é um fim de frase, ou início. O discurso musical, se a música "esquenta" ou "esfria", isso é o que dá o tom da composição aqui.


Recapitulação


Aos 10m51 tem início a recapitulação. Os temas serão exibidos de novo, teoricamente na sua forma original ou próximo dela, mas não aqui. Começamos com o Primeiro Tema, tocado pela orquestra de maneira bem mais assertiva. Aos 11m20s o piano nos dá o Segundo Tema, também alterado e desprovido de suas alusões pastoris. Aos 13m17s o Terceiro Tema aparece no piano, gerando várias consequências com a orquestra, logo depois.


Aos 15m17s a orquestra prepara para a cadência. Esta começa aos 15m33s. A cadência pode não ser prodigiosa na sua escrita para piano, mas certamente é de muita invenção e criatividade. Tem um trecho em que o piano vai fazendo o mesmo motivo, mas os acordes vão se movendo, como um lagarto. Enfim, é escrita com muita musicalidade e a reentrada da orquestra é sutil.


Coda


Os sopros vão entrando aos poucos: primeiro fagotes e trompa (14m57s), depois clarinetes e oboé, realizando um motivo saltitante, uma nota curta, outra longa. Esse motivo tem repercussões importantes (17m06s), se metamorfoseando para arrebanhar a tensão para o final da música. O final em si tem um a escrita orquestral e pianística brilhante, terminando o primeiro movimento de forma apropriada.


2º Movimento - Andante sostenuto (18m27s)


O 2º movimento é uma linda cantilena, que tem seu Primeiro Tema declamado logo no início, pela trompa e repetido pelo piano (19m). Os violinos, em surdina, fazem frazeados de continuidade. Seguem-se várias frases de inegável beleza.


Ouvimos o que se pode chamar de Segundo Tema aos 20m09s, repetido pelo fagote aos 20m29s, com um sutil acompanhamento do piano e das flautas. A frase também vai se desalinhando, ganhando proporções novas em suas aparições no piano, no clarinete e na flauta.


Até que volta o Primeiro Tema, dessa vez no piano (21m42s). E perceba que o compositor não nos deixa esquecer a sonoridade da trompa, com notas longas.


Um novo súbito forte do piano nos traz a uma nova seção (22m15s), que em alguns momentos chega a ser lépida, no meio desse movimento lento e melancólico. Isso desemboca no atestamento, por um solitário fagote, do Segundo Tema (24m01s).


Então um coro de trompas e fagotes faz retornar o Primeiro Tema (24m14s). Os clarinetes o repetem (24m36s) com contracantos dos fagotes e pizzicatos das cordas. Ocorrem, ainda, algumas aparições desse tema e o movimento se encerra de forma criativa.


III. Allegro con fuoco (27m20s)


O finale é um rondó, que é uma forma em que uma parte se alterna com outras em sucessão: A-B-A-C-A-D-A etc. O piano inicia, sem acompanhamento, mesmo da outra mão, com uma melodia bastante rítmica, com três notinhas marteladas. É o Primeiro Tema do movimento. A mão direita entra em cânon (você jura que vai sair uma fuga). A partir de então, começa a acumular tensão (27m31s) para a entrada da orquestra, em fortíssimo e legato, apresentando o mesmo tema.


O caráter rítmico do movimento nos faz pensar na música folclórica tcheca. E, na realidade, é no último movimento que os compositores costumam enxertar ritmos de sua pátria mãe.


Aos 27m58s aparece, no piano, o Segundo Tema importante desse movimento, que também é dançante.


Outra coisa muito importante aqui são as três notas marteladas, tocadas em rápida sucessão. Observe como elas servem para fechar frases, para encerrar seções e para ligar uma ideia a outra. Por exemplo: partes A e B são diferentes, mas têm essas notas em comum. Isso garante unidade à música.


Aos 29m02s surge o Terceiro Tema, de índole mais contemplativa e calma, fazendo um contraste com os outros dois. É repetido imediatamente nas cordas (29m17s). Aos 29m32s vemos uma repercussão desse tema, como se o piano já o fosse desenvolver.


Até que, aos 30m25s, a orquestra ataca com uma frase do Segundo Tema, desfigurada, apressada.


Aos 30m50s o oboé nos traz o Primeiro Tema. As três notas marteladas continuam a exercer seus múltiplos papéis, elas nunca nos abandonarão. Aos 31m12s temos o Segundo Tema, no piano, e aos 31m25s ele parece ser desenvolvido, para logo ser misturado ao Primeiro Tema. É o que eu chamo de Rondó capcioso, porque se formos ser estritos, teremos que chamá-lo de Rondó-Sonata. Ele desenvolve os temas, característica da Forma Sonata, e alterna os mesmos, característica da Forma Rondó.


Observe, a partir de 34m04s, as três notas marteladas fazendo sua mágica - não no piano, mas na orquestra, como acompanhamento.


Aos 34m45s quem volta é o Terceiro Tema, nas cordas. E ele carrega o movimento até o coda.


O Coda (37m02s) é montado sobre as três notas marteladas e os três temas.


 

Considerações finais


E então? Sentiu falta de arpejos corajosos da mão esquerda? De oitavas? No final das contas, ficamos com uma música extremamente elegante e melódica. Verdade que não tem o brilho técnico do piano romântico, mas me parece que Dvořák estava com outro ideal em mente. Esse concerto é clássico, tem muito mais afinidade com um concerto de Mozart que com um de Brahms. Como se fosse um aceno do compositor ao século anterior.


Se tentarmos compará-lo aos de Brahms (veja aqui o Primeiro e o Segundo), realmente ele se complica. Mas, se olharmos a orquestração (madeiras a dois, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos e cordas) veremos que ele não estava disposto a nos deleitar com sua orquestração fabulosa. Ele quis nos dar a chamada "sinfonia com piano solista" (só não gosto do termo). Não há nada de errado nisso. O Segundo Concerto de Liszt é dessa categoria, e é uma obra prima. Dvořák também nos deu uma obra prima.


 

Gravações recomendadas


- Sviatoslav Richter ao piano, com a Orquestra Estadual Bávara, regida por Carlos Kleiber - Essa gravação, de 1976 (portanto, um século depois da composição do concerto) faz o que era necessário: junta o incontestável talento ucraniano Richter com um dos maestros que inspiram mais devoção até hoje, Carlos Kleiber. E é uma das maiores gravações dos dois, mantendo-se de pé como uma das gravações de referência do concerto até hoje. É a minha favorita.


- Andras Schiff ao piano, com a Filarmônica de Viena, regida por Christoph von Dohnányi - Uma gravação excelente e com sonoridade muito boa. É de 1988. Assim como a de Richter, usa a versão original da partitura.




 

E, como sempre, o encorajamos a comentar. Nosso dever é difundir a música clássica, e não sabemos exatamente se estamos conseguindo. Às vezes parecemos rádio-amadores, transmitindo para as galáxias (possivelmente) solitárias.


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Algumas postagens importantes.


Uma opção para o dilema de tocar ou não Música Russa nos concertos hoje em dia.

Aqui, 10 Livros Sobre Música Clássica


As Melhores Orquestras do Mundo:



Perfil da pianista portuguesa Maria João Pires, postagem da nossa correspondente prodígio lusitana Mariana Rosas, do Blog Pianíssimo (www.pianissimo.ovar.info).


Perfil da violinista francesa Ginette Neveu, falecida aos 30 anos em um acidente de avião, em 1949.


Perfil do pianista brasileiro Nelson Freire, considerado um dos maiores dos tempos modernos e falecido em 2021.


Veja também:



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Compreendendo o Maestro:



Saiba, aqui, tudo sobre os Argonautas, um quarteto de MPB Clássica e Contemporânea Autoral Cearense.


Papo de Arara (Entrevistas)



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