Uma imagem vale por mil palavras, e um trecho de música também.
Maria João Pires de certeza sabe disso. "Temos tantas emergências com que lidar na nossa sociedade nos dias de hoje, assuntos como o colapso da família, desastres ambientais", afirma. "Temos que nos perguntar: 'Como é que a maneira como fazemos música pode ser mudada, para ajudar as pessoas a enfrentar estas coisas?"
Citação traduzida do inglês, copiada daqui: Maria João Pires: 10 facts about the great pianist - Classic FM (nº 10)
Conhecida mundialmente pelas suas interpretações de compositores como Mozart, Schubert e Chopin, já colaborou com numerosos músicos de renome como Martha Argerich, Claudio Abbado, Daniel Barenboim, Augustin Dumay, entre outros, para além de inúmeras orquestras como, por exemplo, a Berliner Philarmoniker, a Boston Symphony Orchestra, a London Philharmonic e a Orchestre de Paris.
A sua gravação dos Noturnos de Chopin já foi descrita pela magazine da sua gravadora, Deutsche Grammophon, como a melhor versão disponível, e não é de admirar: as suas gravações maravilhosas com a Deutsche Grammophon do repertório deste compositor nunca deixam a desejar. Desde os Prelúdios, op. 28, até ao 1º Concerto para Piano e Orquestra, a delicadeza e profundidade com que ela interpreta é incomparável, já para não falar do seu fraseado incrível.
Em suma, não admira que tenha dado o seu primeiro recital aos cinco anos de idade.
Nascida em Lisboa no dia 23 de julho de 1944, Maria João Pires não só deu o seu primeiro recital aos 5 anos como tocou publicamente concertos de Mozart aos 7. Iniciou os seus estudos de música e piano com Campos Coelho e Francine Benoît, continuando mais tarde na Alemanha, com Rosl Schmid e Karl Engel.
Tudo isto levaria ao primeiro marco na sua carreira, que iria revolucionar o seu reconhecimento e apreciação para sempre: o Concurso do Bicentenário de Beethoven.
Realizado em Bruxelas, em 1970, teria esta pianista no primeiro lugar do pódio, que lhe trouxe fama internacional – e desde aí, a atenção em torno da pianista continuaria a disparar.
Desde então, ela tem dedicado o seu tempo a explorar novas estratégias para desenvolver esta forma de pensamento na sociedade, ao mesmo tempo em que se concentra no impacto da arte na vida, na comunidade e na educação. Procura também novas abordagens que promovam o compartilhamento de ideias, respeitando a evolução das pessoas e civilizações.
Depois do seu sucesso no concurso, realizou várias estreias, nomeadamente as de Londres (1986) e Nova Iorque (1989), ambas fortemente elogiadas pela imprensa.
Ainda antes desta última estreia em Nova Iorque, em 1987, apresentou-se em Hamburgo, Paris e Amsterdão, por ocasião da digressão inaugural da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, sob a direção do reconhecido maestro Claudio Abbado.
Voltaria a trabalhar com este músico apenas um ano depois da sua estreia na Grande Maçã, ocasião esta que representaria a sua estreia no Festival de Salzburgo juntamente com a Orquestra Filarmónica de Viena.
Foi a partir de 1989 que esta pianista, exímia e ativa intérprete de música de câmara, decidiu priorizar a sua colaboração com o violinista francês Augustin Dumay, com quem tinha realizado a sua estreia em Londres. Apresentar-se-iam principalmente em França, mas também em países como a Holanda, a Bélgica e a Suíça.
Estes dois músicos deram também recitais no Japão em 1992 e 1994, este último sendo o ano em que Maria João Pires se viria a apresentar com a Orquestra Nacional de Lyon.
Deu-se então um interregno nesta colaboração que deu lugar a uma digressão a solo pela Europa por parte da pianista, e o duo voltou a juntar-se depois desta, com o intuito de realizar concertos na Alemanha, na Jugoslávia e na Bélgica, no final de 1997.
A este duo juntar-se-ia ainda o violoncelista chinês Jian Wang, formando assim um trio que realizou diversos concertos em França e empreendeu uma digressão a Espanha.
Foi no meio de toda esta ação que se desenrolou o que até hoje é conhecido como um dos momentos mais caricatos e impressionantes na história da música clássica, em 1999, na companhia do maestro Riccardo Chailly.
Deu-se em Amesterdão, num ensaio que estava previsto para a hora do almoço e como sendo um concerto livre, para além de ter sido previamente acordado que seria gravado para um documentário.
Maria João Pires estava preparada para tocar, em frente a uma plateia cheia de ouvintes, o Concerto para Piano nº 9 de Mozart, mais conhecido por Jeunehomme, uma peça alegre e despreocupada.
Mas o maestro, aparentemente também alegre e despreocupado e com uma toalha à volta do pescoço, ordena que a orquestra comece a tocar.
A pianista entra em pânico. Não era o concerto nº 9 que ela ouvia. Era o inquietante e obscuro começo de outra peça completamente diferente – o Concerto para Piano nº 20 em Ré Menor.
O maestro continua a dirigir a orquestra e não há nenhuma partitura que ela possa usar. Ela segura a própria cabeça em desespero. "Este concerto não é o que eu preparei", sussurra ela a Chailly.
Chailly não para a orquestra e apenas lhe diz "mas tu conhece-lo, tocaste-o no ano passado. Confio na tua memória."
Ele continua a fazer o seu trabalho e a pianista improvisa a introdução, até entrar, finalmente, numa versão irrepreensível da peça. Tudo de memória.
Foi neste mesmo ano que ela decidiu pôr as suas ideias sobre a arte a influenciar a sociedade, comunicação e educação em prática, esta iniciativa culminando na criação do Centro de Artes de Belgais, situado em Belgais, Castelo Branco, um local para a plena implementação das suas conceções musicais e humanísticas.
Neste espaço, as crianças recebiam educação não só sobre música mas também sobre outras artes e cidadania, criando assim a "utopia" de uma escola de artes. Para além disso, ao Centro vinham também artistas provenientes de todo o mundo para enriquecer os conhecimentos das crianças por meio de atividades como residências artísticas e workshops.
No entanto, os resultados deste projeto ficaram bastante abaixo do esperado, o que fez Maria João Pires zangar-se com Portugal. E, para agravar ainda mais a situação, em Março de 2006 esteve sujeita a uma operação ao coração para a colocação de um "bypass", cirurgia que realizou em Espanha com sucesso e que levou a uma pausa na sua atividade profissional.
Antes de sequer voltar aos palcos, Maria João Pires viria a anunciar que ia morar para o Brasil, declarando à Antena 2 e ao Aguarrás que tinha sofrido muito ao tentar implementar o seu projeto em Portugal.
"Vim para o Brasil para me salvar dos malefícios que Portugal me estava a fazer. Sofri fisicamente todos os anos que dediquei àquele projeto e não consegui mais do que um início", afirmou a artista, que viria então a pedir a dupla nacionalidade, e não renunciar à nacionalidade portuguesa, como teria sido sugerido por boatos anteriores.
Dizia ainda que "Não temos patrocinadores privados, nem provavelmente algum dia teremos, num país como Portugal que se comporta sem algum interesse pelas gerações futuras nem por projetos que incentivem valores morais, solidariedade, educação, respeito pelo ambiente, amizade e camaradagem", mais anunciando que tinha comprado uma casa no estado da Bahia, no Brasil, mais precisamente em Lauro de Freitas, município situado na Região Metropolitana de Salvador.
Assim, o Centro de Artes de Belgais perdeu a sua fundadora em 2006, que, no entanto, ficou a cargo de Joana Pires, filha de Maria João Pires, e a pianista acabou por se oferecer para continuar a colaborar no projeto, apesar de não gostar de Portugal.
No entanto, a nova gerência foi sol de pouca dura. O Centro fecharia apenas três anos mais tarde, em 2009, devido a dificuldades económicas.
Maria João Pires acabaria por se mudar do Brasil para a Bélgica, e depois da Bélgica para a Suíça.
Em 2010, apenas um ano depois do encerramento do projeto de Belgais, numa entrevista ao jornal Evening Standard, de Londres, a pianista declarou que "gostaria de se poder retirar". "Já toquei muito. Toquei durante 60 anos, e acho que é demais".
Nesta mesma entrevista, mais declarou que ainda sentia "o mesmo entusiasmo pela música", que continuava a gostar de tocar, embora sentisse uma diferença para o que eram as suas performances de antigamente: "Eu não gosto de estar no palco - eu nunca gostei - mas uma coisa é não gostar, outra é não conseguir lidar com isso. Não estou a lidar bem com isso agora. Uma vez que começo a tocar, é o mesmo de antes, mas depois sinto-me muito mais cansada, porque é tão exigente - não física, mas psicologicamente".
Apesar de tudo, Maria João Pires havia de regressar a Belgais 11 anos depois. Regressando a Portugal em 2017, a pianista decidiu depois tomar as rédeas do projeto outra vez.
"A forma de se promoverem as artes está num impasse e tem que haver um lugar em que se experimentem novas formas que sejam úteis para as pessoas. Belgais é um laboratório. Há muitos no mundo e em Portugal, também. Sinto que posso e tenho a capacidade de colaborar com todas as pessoas que queiram encontrar soluções", afirmaria Maria João Pires em 2019, ao receber a Medalha de Mérito Cultural portuguesa.
"Não estava de todo à espera. Fiquei surpreendida e fiquei muito feliz, na medida em que eu vejo um futuro para Belgais", declarou ainda nessa mesma ocasião.
E a história de Maria João Pires ainda não acabou, porque apesar de se ter retirado de trabalhos mais cansativos, ainda atua em algumas ocasiões, especialmente fora de Portugal.
Mas seja quantos mais concertos der, quantos mais prémios receber, quantos mais discos gravar, vai ter sempre um legado para passar à sociedade de hoje: que a música é unificadora. É humanística. É experimental.
Mas mais do que isso, a música ensina-nos sobre a natureza, a arte, a palavra, a emoção.
E há alguma coisa melhor do que isto para ensinar às gerações futuras?
Abaixo, alguns discos importantes de sua carreira.
Mariana Rosas
Sou a Mariana, nasci em 2008 e sou de Ovar, Aveiro, Portugal. Toco piano desde os 8 anos. Gosto também de ler, desenhar, ouvir e compor música. Sou autora do blog Pianissimo, em que escrevo sobre variados temas relacionados com a música clássica e, por vezes, outros géneros de música.
Os meus pianistas preferidos são Martha Argerich, Evgeny Kissin e Khatia Buniatishvili e o meu compositor preferido é Franz Liszt.
Desde que comecei a tocar que sempre desejei tocar piano profissionalmente e no futuro pretendo ainda tornar-me compositora.
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