Colaboração: Adriano Caetano
Yandra e Neto eu conheci na escola. Não na minha escola onde podemos dar a sorte de fazer amizades para toda a vida. Mas na escola dos meus filhos, porque é também a escola dos filhos deles. Na escola em questão, o "Uniforme" é apenas uma discreta camisa que é vendida em várias cores com o nome da instituição bordado. No mais quase tudo pode. Menos roupa com personagens midiáticos. Ou seja, roupa com um "tema" como diz a pequena coleguinha ou ainda, roupa de "episódio" como diz o meu caçula. Numa dessas ele veio me reclamar que Raul sempre ia de episódio, de personagem. E percebi que Raul sempre ia com uns vestidos coloridos e muito lindos e tive que explicar numa linguagem infantil que aquele "personagem" não era midiático, mas completamente autoral. Teve pai que reclamou e tirou a filha da escola. Mas Raul seguia impávido (ou impávida) com seus vestidos e combinações ousadas. E cada vez mais lindo.
Conversei com Neto e ele disse que era perfeitamente possível fazer uma entrevista com ele e com Yandra. Mas como ele acabou ficando isolado da família num quarto separado por ter contraído Covid-19, Yandra assumiu sozinha a tarefa de responder às nossas perguntas por questões de praticidade mesmo. Muitas pessoas falam sobre questões transgêneras na mídia, mas bem poucas com conhecimento teórico da causa e menos ainda com uma vivência prática intensa da questão. Então, nessa conversa a gente vai mostrar um pouco da rotina dessa família incrível a partir da história de Raul e de sua mãe e de seu pai.
1) A partir de quantos anos vocês perceberam que tinham uma criança trans?!
Para responder a esta pergunta considero necessário deixar claro o que vamos tomar por TRANSGÊNERO. Depois de muito estudar e escutar, compreendemos que o termo transgênero é, como dizem, um "guarda-chuva" que engloba formas de existência distintas da chamada cisgeneridade (quando há conformidade entre o gênero atribuído no nascimento e o sentimento da pessoa sobre si mesma). Enxergamos os primeiros sinais de transgeneridade em Raul mais fortemente quando chegar à escola e tirar a própria roupa para trocar pela saia da sala passou a ser um hábito. Foi quando atentamos para a recorrente escolha dele em "atuar" em suas brincadeiras como "princesa, bailarina"... Usualmente elegendo papéis associados socialmente ao feminino. Sempre tivemos disponíveis em casa os ditos "brinquedos de menina": bonecas, etc... Nosso mais velho sempre brincou numa boa. Talvez por isso não nos chamou atenção a preferência de Raul. Ele tinha 4 anos quando tudo isso veio meio que junto, com a sua fala mais articulada e inteligível. Frases como "Eu quero ser menina" e "Eu posso ser menina" passaram a ser uma constante.
2) Como Raul gosta de ser chamado? Algum pronome ou gênero preferido?
Quando tudo isso começou, tinhamos muito forte dentro de nós o modelo binário (homem-mulher) como referência. Pensamos que, se ele se sentia menina, ele não era menino, e teríamos uma longa viagem pela frente. Atravessar um pólo pra chegar até o outro... Isso nos gerou muitas dúvidas, muito sofrimento, muita angústia. Associamos a ideia de ser trans a dor, medo, sofrimento e desrespeito. Isso é automático. Vemos isso nos olhos de nossos familiares, de nossos amigos. Entretanto, depois de reparar com cautela e lançar mão de leituras e consultas com profissionais excelentes, fomos percebendo que Raul poderia EXPERIMENTAR ser menina. Ressalto essa palavra aqui pois ela é fundamental em nossa trajetória. Por eleger essa narrativa para que nossa família e nosso filho se compreendesse, optamos por usar uma linguagem mista: Utilizamos preponderantemente os pronomes masculinos por termos nos acostumado assim desde que Raul nasceu. Mas temos uma atenção para sempre que possível usar uma linguagem sem marcadores de gênero. Importante: SEMPRE que Raul fala de si no feminino nós acompanhamos... Eventualmente já falamos no feminino de cara... Quando sente necessidade ele nos corrige. Ano passado, surgiu o nome MALU. Um dia ele pediu pra ser esse o nome dele. Respondemos dizendo que por enquanto o nome dele continuaria sendo Raul ainda mas que Malu seria um lindo apelido. Sendo assim, Raul hoje muitas vezes se apresenta como RAUL MALU. Nossa intenção é a de que Raul compreenda as inúmeras possibilidades para além de "ser homem ou ser mulher" em sentido estrito. Por isso optamos por seguir misturando nomes e pronomes. EXPERIMENTANDO.
3) A escola é um espaço de formação que muitas vezes reproduz homofobia e transfobia. Como foi o diálogo de vcs com a escola? Vcs acham que Raul se sente acolhido?
Eu reescreveria esta frase assim: "A escola é um espaço de formação que SEMPRE reproduz homofobia e transfobia". É necessário partir dessa ideia para pensar e construir espaços mais saudáveis para as crianças e adolescentes LGBT. Nosso mundo se organiza em torno de um mundo homofóbico e transfóbico estruturalmente e a escola desempenha o papel de reprodutora desse mesmo modelo. Tomar consciência disso não nos exime de reproduzir também (inclusive nós, mães e pais engajados) práticas que alimentam esse modo de viver. Vou dar um exemplo: Quando supomos, ao pegar uma criança no colo, que, por possuir um pênis, ela será MENINO, - e aqui pegue o combo completo do "ser menino": gostar de brinquedos assim, comportar-se assado, namorar no futuro pessoas do gênero tal, etc, etc... - o fazemos sem pensar... é automático. É urgente, portanto, fomentar o costume de estranhar "o que todo mundo aceita", "o que é normal". Eis o papel da escola! Uma pena saber que instituição alguma implementa efetivamente isso que seria, de fato, revolucionário: questionar a heteronormatividade de dentro... Contar pra esses meninos e meninas o tanto de possibilidade que existe de ser e existir nesse mundo...
VOLTANDO À PERGUNTA: Nossos filhos estudam em uma escola de pedagogia "alternativa". Tivemos sorte de ter como professora uma mulher incrível, disposta a olhar para Raul por cima do muro das respostas fáceis. Ela foi fundamental desde o momento em que virou pra gente e disse "Cês tão vendo que só cresce, né!?". Com ela, construímos dentro da sala uma verdadeira comunidade. Decidimos, Neto e eu, não fingir que nada estava acontecendo nem "enfiar goela abaixo" das pessoas. Nos empenhamos em conversas recorrentes com todas as famílias para explicar nosso filho, explicar esse "mundo" desconhecido por todos nós (habituados ao feijão com arroz da vida heteronormativa). Num momento seguinte, ao perceber que isso era um assunto desconhecido e tabu em qualquer escola, mesmo na nossa, decidimos solicitar uma reunião com o Conselho Pedagógico. Lá fizemos uma apresentação sobre as bases para um mínimo entendimento sobre as diferenças de terminologias e "classificações"... Nossa postura é, repetidamente, a de negar véus e armários. Raul ainda está na Educação Infantil e sabemos do longo caminho que temos pela frente. Eu diria que Raul não se sente acolhido. Pois, para isso, ele teria que ter se sentido mal em algum momento na escola. Ouso dizer que isso não ocorreu. Conseguimos, com a amizade e generosidade de muitas pessoas, construir uma bolha de segurança e amor para Raul. Ser menina é uma característica de Raul semelhante à cor de seus cabelos para as crianças que convivem com ele. E isso é massa demais de ser visto. ATENÇÃO: há, claro, episódios pontuais de "você tem pinto", "você não é menina de verdade". CLARO! Mas a habitualidade da normalidade enxergada nele é muito maior... era isso que eu queria contar.
4) Gostaria de fazer uma pergunta, de certo modo complementar à anterior citando o filósofo trans espanhol Paul B. Preciado “Para acabar com a escola assassina, é necessário estabelecer novos protocolos de prevenção da exclusão e da violência de gênero e sexual em todos os institutos e escolas.” Esta frase é do livro um Apartamento em Urano, Crônicas da Travessia. Mais especificamente do capítulo chamado Uma escola para Alan onde ele narra a morte de um adolescente espanhol um dia após o natal. Alan, foi o primeiro a ganhar o direito a mudar de nome socialmente, mas isso não impediu que a escola tivesse um papel nocivo e determinante em sua morte e, a partir daí, Preciado faz toda uma análise das estruturas sexistas tradicionais das escolas. Na perspectiva de vocês esses “novos protocolos” mencionados por Preciado estão sendo criados? Quais seriam eles?
Nós elegemos um modelo do ser humano perfeito: homem-cis-hétero-branco-capaz fisica e intelectualmente. Tudo que destoa disso é, explicitamente ou implicitamente, menosprezado nas escolas. Minha resposta parte da observação das escolas que conheço particularmente: Não vejo novos protocolos sendo criados organicamente nos espaços escolares... me refiro a construções nascidas de intenções pedagógicas próprias, sabe!? De reuniões específicas, partindo de observações francas. Acontece que falar disso toca em armários internos nossos. Bell Hooks fala disso num texto em que discute educação sexual. Ela fala que esbarramos na nossa vergonha e medo de falar de nós mesmos, adultos, educadores. Concordo com ela. Em termos jurídicos, há algum avanço pontualmente: legislações que obrigam as escolas a respeitar e usar o nome social... essas coisas... Vejo como muito importante falarmos dos banheiros. A divisão sexista que a arquitetura faz nos espaços escolares (e mais que eles) ofende e constrange muito.
4) Em algum momento vocês procuraram ajuda de uma psicóloga? Ou de um grupo de apoio, por exemplo, o movimento "mães pela diversidade"?
Tivemos consultas pontuais em psicológa e psiquiatra incríveis. Elas nos ajudaram em momentos tensos e angustiantes. Foi fundamental na conquista de confiança e conhecimento da gente. Já o Mães pela diversidade, é um capítulo à parte: a força do encontro, a potência do estar junto e se mostrar... ouvir histórias distintas, sentimentos distintos, opiniões distintas... e permanecer junto por um propósito: expandir os horizontes de nossos filhos. A força de ouvir sobre os outros e falar sobre si é muito menosprezada, infelizmente. Deveríamos sempre buscar quem vive algo parecido com a gente... é uma troca de pura generosidade: você colhe ao mesmo tempo que oferta.
5) O que vocês passaram a estudar e a fazer para encontrarem a melhor forma de acolher e compreender Raul?
Neto nasceu pra ser pai de Raul. Veio pronto! Nunca se desesperou e sempre me disse que ia ficar tudo bem. É impressionante a sabedoria e sensibilidade que ele tem intuitivamente. Já eu, medrosa e ignorante, tive que comer muito pirão pra chegar num ponto que me fez mais forte: saber que Raul não está fadado ao sofrimento. Que a sua vida é e pode continuar a ser maravilhosa. A primeira leitura que lampejou isso dentro da gente foi o capítulo sobre transgêneros do livro Longe da árvore, de Andrew Solomon. A introdução do mesmo livro também. As leituras de experiências transgênero foram importantes para compreender as variações de entendimentos e sentimentos, bem como a diversidade dentro mesmo da categoria trans. Livros como Vidas trans e Se eu fosse pura (ambos livros de Amara Moira). Leituras clássicas a respeito do tema sexualidade foram fundamentais para questionarmos em definitivo o padrão binário e considerar a fluidez como algo intrínseco à infância. O que fazemos, ao silenciosamente ensinar a heteronormatividade, é negar possibilidades às crianças.
6) Algumas obras de arte como o romance Orlando, de Virgínia Wolf (com uma adaptação cinematográfica excelente de Sally Porter estrelada por Tilda Swinton) ou o filme Tomboy, de Céline Sciamma, de 2011 retratam personagens que transitam entre os gêneros. Outra obra muito interessante e divertida é a série animada infantil SheZow que conta a história de um garoto que vira super-heroína por acaso num momento de disputa com a irmã e acaba gostando e adotando a identidade superpoderosa. Existem também, ainda poucos, mas cada vez mais numerosos, jogos de videogame no estilo RPG que falam de temáticas específicas do universo LGBT... Não sei se vocês conhecem essas obras, mas a pergunta em especial é: alguma obra de arte específica ajudou vocês (ou ainda ajuda) nesse processo? Ou ajuda Raul com a questão da representatividade?
Lamentamos demais a ausência de uma produção voltada ao público infantil que tenha personagens fugindo da lógica binária. Sentimos muita falta disso, na verdade. Existe aqui (Fortaleza), entretanto, um coletivo chamado As travestidas. Raul é encantado pela Mulher Barbada e pela Giselle Almodóvar (que é também Silvero Pereira). Com elas, conseguimos mostrar pra Raul (e pra Bernardo, nosso mais velho) que tem muitos jeitos de ser.... e que experimentar é o melhor jeito de saber se gosta...
7) Como vocês protegem Raul da discriminação? Com quais recursos vocês contam?
Por enquanto, nossa maior proteção é saber que ele tem apenas 6 anos e tá debaixo de nossa vista a todo momento. Nossos filhos não têm acesso livre a telas e conteúdos digitais, sendo assim, ainda sabemos o que eles vêem e ouvem na maioria das vezes. Sobre o convívio no mundo, vivemos algo super louco: ao mesmo tempo que construímos esse lugar seguro para eles, sempre aparecerá alguém novo... já percebemos que isso intimida um pouco Raul (a mim também, preciso confessar) mas estamos sempre por perto... ou tem sempre alguem em quem confiamos muito por perto. Este ano entrou um menino novo na sala. Ele dizia que Raul não era menina de verdade... ele ficou bem triste e nos contou. Respondi que ele é sim uma menina de verdade e que não é o fulaninho quem decide isso. Nessas horas, enfatizo que tem gente que vai dizer muita besteira e que dói mesmo... mas que ele precisa nessa hora lembrar de todo mundo que o ama. Lembrar que ficamos tristes com coisas que os outros fazem é uma das coisas que dizemos... Vai ter muita merda ainda, a gente sabe... A gente quer proteger ao máximo enquanto podemos, sabe!? Mas damos as pistas do que vem por aí. Vai ter muita belezura também!
8) Qual o recado vcs deixam para os país que estão passando o mesmo que vcs?!
A VIDA DE SEU FILHO NÃO PRECISA SER UMA TRAGÉDIA COMO REPETEM!!!
PROCUREM PESSOAS QUE VIVEM SITUAÇÕES COMO A SUA!!!! Procurem o Mães pela diversidade e coletivos/ongs semelhantes que existirem por aí.
Abaixo deixamos dois vídeos que Raul ganhou de aniversário das artistas/personas que admira bastante: Mulher Barbada e Gisele Almodóvar de Silvero Pereira.
Mais uma vez agradecemos Yandra por ter cedido seu precioso tempo para conversar com a Arara Neon e agradecemos também a você, que leu tudo isso até aqui!
Até a próxima!