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Martha Argerich - A Pianista Maioral

Atualizado: 25 de nov. de 2023

Por Rafael Torres

Nascida em 5 de junho de 1942, em Buenos Aires, Argentina, e hoje (fevereiro de 2023), com 81 anos, a pianista Martha Argerich ainda toca com a mesma precisão dos áureos tempos. Hoje ela tem cidadania Suíça, país onde nasceram suas três filhas, de três relacionamentos.


Martha demonstrou interesse pelo piano antes dos três aninhos, iniciando o estudo do instrumento nessa idade. Foi uma criança muito precoce, começando o jardim de infância aos 2 anos e 8 meses, sendo a mais jovem da turma. É famosa a história dessa época, que diz que um amiguinho a desafiou a tocar piano. Ela simplesmente escalou o banquinho e tocou com perfeição, de ouvido, uma música que a professora havia tocado, para espanto de todos (inclusive da professora).


Martha Argerich
Martha Argerich.

Estreou aos 8 anos de idade, com orquestra acompanhante, executando o 20º Concerto para Piano e Orquestra, em Ré Menor, do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e o 1º Concerto para Piano e Orquestra, em Dó Maior, do alemão Ludwig van Beethoven.


Aos 20 anos ela teve seu primeiro contrato de gravação, quando registrou o Scherzo Nº 3 e a Barcarola do polonês Frédéric Chopin, 2 Rapsódias, Op. 79 do alemão Johannes Brahms, a Toccata Op. 11 do russo Sergei Prokofieff, o Jeux D'eau do francês Maurice Ravel e a Rapsódia Húngara Nº 6 do húngaro Franz Liszt. Foi gravado em Hanôver, Alemanha, em 1960, pela gravadora Deutsche Grammophon.


Voltando um pouco. Aos cinco anos ela foi estudar com o professor italiano (mas ainda na Argentina) Vincenzo Scaramuzza. A família toda se mudou, em 1955, para a Europa, fixando-se, primeiro, em Viena, Áustria, onde Martha estudou com o genial pianista vienense Friedrich Gulda, que ela considera sua maior influência e fez com que ela gostasse de jazz (pô, sacrilégio, Gulda). Posteriormente, foi aluna de Bruno Seidlhofer, que também era professor de Nelson Freire (e havia sido do próprio Gulda). Foi nessa época que sua amizade com Nelson começou, e eles viriam a ser melhores amigos e sua parceria musical seria profícua, tendo gravado ao menos oito discos juntos, a maioria com obras para apenas dois pianos (que tem um repertório diferente e mais sério do que o piano a quatro mãos).


Mais tarde, estudou também com Stefan Askenase e Maria Curcio, tendo, também, breves períodos de aulas com Madeleine Lipatti (viúva do grande pianista romeno Dinu Lipatti) e até com famoso pianista russo Nikita Magaloff.


Martha chegou a ter uma crise criativa, por volta dessa época, e partiu para Nova Iorque para tentar aulas com Vladimir Hotowitz. Ela estava, então, há três anos sem tocar. Não conseguiu as aulas e, quando voltou à Europa, Madeleine Lipatti, sua antiga professora, insistiu e a encorajou a voltar a se apresentar nos palcos.


Chegou, ainda, a ter um ano e meio de aulas com o grande e lendário pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, mas não foram muito proveitosas e ela largou.


Mas sua carreira já estava encaminhada ao vencer, em 1957, a Competição Internacional de Genebra para Pianistas, e o Concurso Internacional de Piano Busoni, na Itália, também em 1957. Mas a grande consagração, a maior que um pianista pode ter, foi quando ganhou o principal deles: o Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin, em sua sétima edição, em Varsóvia, Polônia, terra do compositor. Martha Argerich já era uma lenda!


Depois de vencer o Concurso Chopin (aos 24 anos) sua carreira internacional decolou. O Concurso faz isso com os ganhadores até hoje. Ela não participava mais de concursos, ela presidiria a banca julgadora dos concursos. Como é o caso do próprio Concurso Chopin, em sua 10ª edição. O fato é que, quando era jurada desse concurso, em 1980, viu, no candidato Ivo Pogorelić o que os outros jurados não viram. Ele foi eliminado da terceira etapa. Argerich abandonou o concurso proclamando "Ele é um gênio". O Iuguslavo (tinha isso, na época), de Belgrado, Ivo Pogorelić hoje é um dos grandes e mais celebrados pianistas da humanidade. No momento em que Martha Argerich irrompeu do palco, a carreira de Pogorelić estava mais garantida do que se ele tivesse levado o troféu.


Mais 3 fatos sobre o Concurso Chopin:

  • Na edição em ela ganhou, a VIIª, o vice-campeão foi o nosso Arthur Moreira Lima (e depois ele seria 3º lugar no Concurso Tchaikovsky, em Moscou, que, junto ao Concurso Chopin, é o mais importante do mundo).

  • O Concurso é televisionado e, hoje em dia, transmitido pelo YouTube. Os pianistas ganhadores saem de lá celebridades, com contratos de gravação e turnês;

  • O super pianista brasileiro Nelson Freire abandonou o júri da edição de 2021 por problemas de saúde. Ele havia caído na calçada, no Rio de Janeiro, quebrado o braço e feito uma cirurgia complicadíssima que podia até mesmo deixá-lo inabilitado a tocar. Nelson entrou em depressão, estava fisicamente debilitado e não conseguia tocar, sua atividade favorita do dia. Pouco tempo depois, em novembro de 2021, ele morreu.

A carreira de Martha é estranha. Ela costumava gravar muita música para piano solo, mas hoje se queixa da solidão que isso acarreta. A totalidade de suas gravações, agora, são de Concertos (Piano e Orquestra) ou Música de Câmara com Piano. Ela tem uma aversão arisca à imprensa e detesta publicidade. Isso fez com que, mesmo considerada a maioral, ela tivesse passado boa parte da carreira em um leve (eu diria até saudável) ostracismo. Isso porque, a partir dos anos 80 ela foi evitando os recitais de piano solo.


Ela é uma apoiadora tenaz de alguns pianistas, como a venezuelana Gabriela Montero, o também venezuelano Sergio Tiempo e o italiano Gabriele Baldocci.


Em 1963 ela engravidou do regente chinês Robert Chen, com o qual tem a filha Lyda Chen-Argerich, uma violista. Eles se casaram antes do bebê nascer, mas o casamento durou pouco, apenas alguns meses. Entre 1969 e 1973 ela foi casada com o regente suíço Charles Dutoit, com quem tem a segunda filha, Annie Dutoit, atriz e produtora. Mesmo depois da separação de Dutoit, eles continuaram tocando juntos (e fizeram gravações) até hoje. Ela namorou, nos anos 70, o pianista americano Stephen Kovacevich, com quem teve sua terceira e última filha, Stéphanie Argerich, uma fotógrafa. Com Kovacevich ela também dá concertos até hoje, ainda que divorciada.


Em 1990 Martha descobriu um câncer de pele. O primeiro tratamento parecia ter tido êxito, mas não teve: houve metástase em vários órgãos. Ela decidiu, então, ir aos Estados Unidos para tentar um tratamento experimental. Desta vez ela se curou. Está boazinha ainda hoje.


Em 2005, Martha foi agraciada com o Praemium Imperiale, o mais importante da música.


Ela fuma como uma Caipora.


Seu Pianismo


Argerich é uma pianista modelada pela Tradição Romântica. Não que ela toque à guisa "daquela" tradição do polonês Ignacy Paderewski, do polonês Ignaz Friedman, do francês Alfred Cortot, ou mesmo do polonês Arthur Rubinstein. Essa tradição já havia passado. Mas Martha tem um pé na Tradição Romântica, sim, que é calcada em um toque expansivo, sonoridade grande (eram trovões, aquelas oitavas no Tchaikovsky), rubatos salientes e, principalmente, a capacidade de colorir o som, adaptando-o a cada variação de humor que a Música do Romantismo propõe. Mas ela e os pianistas de sua geração anularam os exageros, tocando com mais objetividade, mais rapidez, mesmo nos movimentos lentos,


Apesar disso, seu repertório abrange obras de compositores do Barroco, Classicismo e Modernismo. Ela toca desde Johann Sebastian Bach a Carlos Guastavino, passando por Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig van Beethoven, Franz Schubert, Robert Schumann, Frédéric Chopin, Franz Liszt, Piotr Tchaikovsky, Claude Debussy, Maurice Ravel, Sergei Rachmaninoff, Dmitri Shostakovich, Sergei Prokofiev, Béla Bartók, Astor Piazzolla e outros.


Mesmo assim, seu repertório é razoavelmente pequeno, de maneira paradoxal. Há compositores nesta lista, de que ela gravou apenas 2 ou 3 obras (gravou várias vezes, mas, ainda assim...). Não gravou, a título de exemplo, todas as Sonatas para Piano Solo de Beethoven (gravou somente 3 das 32), gravou apenas 1 dos 4 Concertos para Piano e Orquestra de Rachmaninoff. Gravou por duas vezes a Burleske para Piano e Orquestra, de Richard Strauss, depois disse que a peça era muito estressante e não mais a tocaria. Do italiano Domenico Scarlatti, gravou, repetidas vezes, apenas uma pecinha, a Sonata em Ré Menor (e ninguém toca isso como ela).


Seu compositor favorito, eu já ouvi em alguma entrevista é Schumann. E, de fato, ela gravou muito dele, além do que, a afinidade musical que tem com ele é perceptível nas interpretações.


Continuando, quando Martha toca na dinâmica piano (p), parece que o universo está te contando um segredo. É ele que murmura em piano. Seu forte (f) é outra história, podendo ser estrondoso, quase cataclísmico, de um poder que assombra plateias.


Sua abordagem é quase sempre lírica. A obra de Schumann é concebida em dois polos (eufórico e taciturno, arrebatado e contemplativo, Florestan e Eusebius, como vimos nesse artigo).


Talvez sua mais impressionante qualidade seja a de tocar com uma desconcertante naturalidade, como se nada, na música, a assustasse.


Martha é, por vezes, considerada a maior pianista do mundo. É respeitada por todos, parece se dar bem com todo mundo (dá-se bem com seus ex-maridos, o que é um bom sinal). E, aos 81 anos continua nos embasbacando a cada concerto e gravação.


 


Daniel Barenboim


Desde pequena, Martha é amiga do pianista e regente também argentino, Daniel Barenboim. Ela lembra da sua mãe perguntando "Por que você não toca um repertório como o de Daniel?". O Repertório de Daniel era enorme. Ele gravou as 32 Sonatas de Beethoven, de cor, ao menos 4 vezes, incluindo uma em DVD. Como maestro, rege de cor suas 9 Sinfonias. E ainda toca piano enquanto rege seus 5 Concertos para Piano, ou os 27 de Mozart. Muito recentemente, em meados da década de 2010, os dois fizeram uma série de apresentações no Teatro Colón, em Buenos Aires, que resultaram em vários CDs ao vivo, tanto de eles dois ao piano (2 pianos) quanto dele regendo sua orquestra, a West-Eastern Divan Orchestra, com ela ao piano.


Claudio Abbado


Outro que foi seu amigo durante anos foi o maestro italiano Claudio Abbado. Curiosamente ela o conheceu como pianista (foi a época em que ele estava decidindo se se dedicaria ao piano, à regência ou à composição). Em um Masterclass em Salzburgo, Áustria, ela disse que tudo o que o professor queria ouvir era Abbado, dono de um toque suave. Posteriormente, quando a carreira de regente dele rapidamente escalou, eles fizeram diversas gravações de piano e orquestra, especialmente com a Sinfônica de Londres e a Filarmônica de Berlim.


Nelson Freire


O saudoso pianista mineiro, falecido em 2021, Nelson Freire, foi amicíssimo dela. Acredito que, por causa dele, ela tenha aprendido português (fala 6 idiomas). No documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles (2003), ela aparece em várias cenas, demonstra ter muita intimidade e afinidade musical com ele. Em todas essas cenas ela fala português, que, por uma falta de cortesia por parte da produção, foi legendado. Não precisava mesmo, sua articulação é clara, nítida, e seu vocabulário plena conta do recado. Juntos no palco eram impecáveis e implacáveis. Lembro de ter visto em DVD sua interpretação da Suíte Para Dois Pianos Nº 2, de Rachmaninoff.


Gidon Kremer


O violinista letão tem muitos e muitos discos gravados com ela, o que pressupõe uma saudável amizade. Gravaram Sonatas para Piano e Violino de Ludwig van Beethoven (as 10), Robert Schumann, Béla Bartók, Sergei Prokofiev. Trios e mais Trios para Piano, Violino e Violoncelo - isso para falar apenas em gravações de estúdio.


Mischa Maisky


O violoncelista letão-russo, um dos grandes do mundo, também foi parceiro constante de Martha. Talvez o maior parceiro musical. Ele é excêntrico, tanto na maneira de tocar quanto na de vestir. Lembro quando, no começo dos anos 90, saiu algum de seus discos e, na capa, ele estava todo vestido de couro (não que isso tenha me gerado alguma reação). Ele sempre quis ser essa persona meio heavy metal no mundo erudito. Mas isso é irrelevante. O que importa é se ele toca bem e adequadamente. Tocar bem, é óbvio que toca, é um solista respeitado e requisitado em todo o mundo. Se toca adequadamente, isso vai depender do que o ouvinte considera adequado. Por exemplo, ele toca com bastante rubato e muito vibrato, mesmo interpretando Bach. Mas eu, particularmente, que acho as Interpretações Historicamente Informadas são profundamente superestimadas, acho Maisky bem agradável. Gravou muito com Martha, por exemplo: Sonatas para Viola da Gamba e Cravo de Johann Sebastian Bach (adaptadas para Violoncelo e Piano); as 5 Sonatas para Violoncelo e Piano de Ludwig van Beethoven; Fantasiestücke para Violoncelo e Piano, de Robert Schumann; Sonata para Violoncelo e Piano de Frédéric Chopin; Sonata para Violino e Piano (transcrita para Violoncelo e Piano) de César Franck; Sonatas para Violoncelo e Piano de Claude Debussy, Sergei Prokofiev; Dmitri Shostakovich e muito mais.


 

Os Festivais


Martha Argerich é participante especial em alguns Festivais de Música. Ela até fundou um. Observe:


Festival de Lugano


No Festival de Lugano, que ocorre na cidade de mesmo nome, na Suíça, Martha encaixou um projeto, o "Projeto Argerich", que ela comandou entre 2005 e 2016. Nele, ela agregava amigos e jovens músicos do mundo inteiro pelo prazer de fazer música juntos. Foram lançadas várias caixas, com múltiplos CDs, com um repertório em parte perfeitamente normal, em parte composto por obras um tanto menos conhecidas de compositores famosos. Alguns desses CDs têm Martha em poucas faixas. Um muito bom, o de 2005, conta com a presença de Martha no Quarteto com Piano Nº 3, de Ludwig van Beethoven (com Renaud Capuçon, Gautier Capuçon e Lyda Chen, sua filha); a Sonata para Piano Nº 16, de Wolfgang Amadeus Mozart (transcrita por Edward Grieg para 2 pianos, em que ela é acompanhada por Piotr Anderszewski); a Segunda Suíte para Dois Pianos de Sergei Rachmaninoff (com Gabriela Montero); As Variações sobre um Tema de Haydn, de Johannes Brahms (para 2 pianos, sendo a outra, Polina Leschenko) e 3 Romances Argentinos, de Carlos Guastavino (para 2 pianos, sendo o outro, Mauricio Vallina). Esses CDs contribuíram muito para que o nome de Martha Argerich continuasse falado no começo do século XXI.


Festival de Verbier


O Festival de Verbier vem, desde 1994, todos os anos, por duas semanas entre julho e agosto, encorajando jovens músicos a fazer participações em uma das três orquestras de que dispõe. Ocorre na bela cidade de Verbier, nos Alpes Suíços. Em CD, há um com repertório do compositor Rodian Schendrin, em que ela e Mischa Maisky tocam o Concerto para Violoncelo e Orquestra, chamado "Oferta Romântica", com a Orquestra do Festival, regida por Neeme Järvi; e outro em que ela toca o Trio para Piano, Violino e Violoncelo de Joseph Haydn e o Concerto Nº 3 para Piano e Orquestra de Sergei Prokofiev, com a Orquestra do Festival, regida por Yuri Temirkanov.


Argerich Music Festival and Encounter in Beppu


Um festival que ela criou e dirige, em Oita, Japão. A finalidade do festival é fofa: em um ambiente caseiro, receber músicos estudantes do mundo inteiro, dar-lhes aulas, fazê-los tocar e, quem sabe, ter uma oportunidade de tocar com Martha Argerich e outros músicos famosos. O público é constituído também por crianças.


 

Gravações Importantes


- Shostakovich, Concerto para Piano, Trompete e Cordas (Concerto para Piano Nº 1) e Música de Câmera - um disco impecável, gravado em 1994 e lançado (essa compilação) em fevereiro de 2023. O Concerto de Shostakovich, que ela já havia gravado diversas vezes, tem aqui sua versão definitiva. Parece que combinaram ela, o trompetista, o regente e a orquestra. Ninguém entra um passo à frente ou atrás. O trompetista, que toca quase tudo com surdina, se chama Guy Touvron; a orquestra é a Orquestra da Câmara Heilbron de Wutemberg e o regente, Jörg Faerber. As obras de câmera, todas de Shostakovich, são o Trio com Piano Nº 2, com Gidon Kremer e Mischa Maisky; e a Sonata para Violoncelo e Piano, com Mischa Maisky. Todos encontram em Shostakovich a oportunidade para tocar de modo soturno e misterioso. Um dos melhores álbuns da história do disco.


- Frédéric Chopin - Martha Argerich - Em 1965 ela havia ganhado o Concurso Chopin (em que se toca apenas Chopin). Rapidamente, em 1967, gravou este maravilhoso disco, pela Deutsche Grammophon, também só com obras do Polonês. Tem a Sonata para Piano Nº 3, os Scherzos Nos. 2 e 3 (ou Scherzi), a Barcarola, 3 Mazurkas, o Andante Spianato e Grande Polonaise Brilhante e a famosa Polonaise-Heroïque em Lá Bemol Maior. Tudo tocado com inspirada juventude, confiança absoluta e andamentos ligeiramente rápidos. O ponto alto é a Sonata Nº 3, Os 2 Scherzos e a Barcarola.


- Wolfgang Amadeus Mozart - Concertos para Piano e Orquestra Nos. 20 e 25 - Com Martha Argerich, ao piano e Claudio Abbado regendo a Orchestra Mozart - Gravado no Festival de Lucerna, em 2013, o maestro estava em seus últimos meses de vida - ele viria a morrer no ano seguinte, de câncer no estômago. Não se enganem, é uma interpretação deslumbrante. Eles invertem a ordem cronológica, colocando o Nº 25 antes do Nº 22. O Concerto Nº 25, em Dó Maior, K. 503, de 1786 e é uma peça carismática. Ela nos passa a indelével sensação de otimismo. Na época de Mozart era considerado o Concerto para Piano mais difícil já escrito. Abbado e Martha fazem um trabalho incrível (embora se possa pensar que o piano está microfonado muito perto, mas creio que isso se deva à potente sonoridade da pianista contra uma orquestra de câmara). No segundo movimento, não podemos esperar de Martha um toque leve. Sutil, sim, mas não leve. Mas fica belíssima, a interação piano/orquestra. Já o Nº 20, em Ré Menor, K. 466, foi escrito no ano anterior, 1785. É uma peça fugidia, com uma atmosfera trágica. É um dos concertos mais famosos de Mozart. A Orchestra Mozart foi uma das que Abbado supervisionou a montagem, assumindo, desde o início, o posto de Regente Titular, ficando, também, responsável pela seleção e os testes dos músicos.


- Robert Schumann - Kinderszenen e Kreisleriana - Mais um disco de piano solo, este de 1984. Se você quer ouvir Martha tocando com delicadeza, às vezes quase com medo de fazer barulho, é este aqui. Mas, claro, como são Florestan e Eusebius, você vai ouvir a constante alternância entre dois estados de espírito completamente diversos, isso porque as duas peças têm múltiplos movimentos. Kinderszenen (Cenas Infantis), Op. 17, é uma peça relativamente juvenil, de 1838, e tem treze movimentos bem curtos (entre 28s e 2m23s). É uma obra muito adorada, até hoje. Preste atenção nos movimentos 1. Von Fremdem Ländern und Menschen; 4. Bittendes Kind; 5. Glückes Genug, que parece ter sido escrito por Ernesto Nazareth; 6. o famoso Träumerei; 10. Fast zu Ernst e sobretudo a 12. Kind im Einschlummern. A Kreisleriana, Op. 16 também foi escrita em 1838 (foi revisada em 1850). Tem oito movimentos, e são mais longos (entre 2 e 8 minutos). É uma peça mais séria, considerada, hoje, uma das mais difíceis e complexas que Schumann escreveu. Acredita que ele enviou uma cópia da partitura para aquele em cuja homenagem escreveu a peça, Frédéric Chopin? E que este, sem um pingo de tato ou até com hostilidade, elogiou apenas a qualidade do desenho da capa? Ô, seu Chopin, me faz favor! A Kreisleriana, que deve esse nome a um dos personagens (e um romance) de E. T. A. Hoffmann, começa agitada (e Martha faz mais rápido ainda), mas logo nos mostra toda a doce contemplatividade do personagem (este de Schumann) Eusebius. Repare nos movimentos 2. Sehr innig und nicht zu rasch; 4. Sehr langsam; 6. Sehr langsam e 7. Sehr rasch. É um dos melhores discos da Martha, porque ela não se incomoda nem um pouco com as passagens difíceis: toca como se fossem fáceis.


- Maurice Ravel - Concerto para Piano em Sol, Sonatina e Gaspard de la Nuit - Este aqui talvez seja o meu disco predileto da Martha Argerich. Gravado em 1967 (o Concerto) e 1975 (Sonatina e Gaspard de la Nuit), foi lançado tudo junto, quando passaram para CD. Acompanhada finamente por Claudio Abbado e a Filarmônica de Berlim no Concerto, ela toca como uma deusa. O segundo movimento é mais expressivo do que o da gravação de Michelangeli, ela dosa com cuidado e, ao mesmo tempo, calculado desleixo, as mudanças de dinâmica e de andamento. É incrível. Mas o Concerto (escrito em 1932), por mais belo que seja, é uma peça descomplicada e direta, o que torna as duas peças restantes as mais importantes do álbum. Gaspard de la Nuit, de 1908, é completamente mergulhada no Impressionismo, movimento do qual os maiores expoentes eram Claude Debussy e Maurice Ravel. É uma peça complexa, áspera e difícil. De fato, hoje em dia é considerada uma das peças mais difíceis já escritas para piano. Ela tem 3 movimentos - Ondine, Le Gibet e Scarbo - e a dificuldade é progressiva. Todos os três foram inspirados em poemas de Aloysius Bertrand. Ondine já começa com uma alternância de notas, na mão direita, que é muito mais difícil do que parece. Le Gibet (A Forca) é uma paisagem desolada, com uma nota sempre repetida na mão direita e os graves e medonhos acordes na esquerda. Scarbo, precisamente, é considerada a mais difícil. Ravel a queria mais difícil que a Islamey, de Mily Balakirev. Começa assustadora como Le Gibet, mas logo irrompe em passagens ágeis e em dinâmica mais forte. E as melodias vêm em pequenos recortes. Seu coda, o último minuto, é notavelmente árduo. Por último temos a Sonatina, peça de 1905 que é de pura beleza. Beleza que Martha atinge naturalmente.


- Salzburgo - Recital de Martha Argerich e Nelson Freire - Gravado no Festival de Salzburgo, Áustria, em 2009, este disco reúne os dois pianistas na primeira gravação ao vivo em que constam apenas os dois. Primoroso, altamente elogiado, premiado e com os dois pianistas tocando como nunca. Nelson Freire estava no auge de sua notoriedade, com um contrato com a gravadora DECCA em que lançava praticamente um disco por ano (embora Salzburgo tenha saído pela Deutsche Grammophon, acho que por conta da Martha). Abre com as Variações Sobre um Tema de Haydn, de Johannes Brahms. Veja bem, (o Romântico) Brahms pegou um tema que pensou ser do (Clássico) Joseph Haydn e escreveu, com ele uma série de 8 variações. São 10 faixas: o tema, as 8 variações e o finale. Compôs duas versões, idênticas em conteúdo, uma para orquestra e outra para dois pianos. A orquestral é muito mais gravada e tocada, mas obviamente não é a que vemos aqui. Acabou que o tema, chamado "Coral de Santo Antônio", não era sequer de Haydn. Até hoje não se sabe de quem é. As Variações formam uma peça encantadora, tranquila e pacífica. Depois, vêm as Danças Sinfônicas, de Sergei Rachmaninoff, essa, sim, uma peça orquestral arranjada para dois pianos, se bem que pelo próprio compositor. Escrita em 1940, sendo a última peça composta por Rachmaninoff (morreu em 1943), a suíte tem 3 movimentos: I. Non Allegro, II. Andante con Moto e III. Lento Assai – Allegro Vivace. A suíte é muito bem sucedida, bem estruturada e bem adequada aos instrumentos, sejam eles os dois pianos ou a orquestra. Então ouvimos o doce Grande Rondó em Lá Maior, do último ano de vida (1828) de Franz Schubert. É uma peça graciosa e pouco ambiciosa. Mas muito atraente. Por fim, eles tocam outra peça sinfônica adaptada para 2 pianos. É La Valse, de 1920, do moderno Maurice Ravel. Incorrigivelmente orquestral, sua partitura para dois pianos foi escrita pelo próprio Ravel como uma demonstração da música, que ainda não estava orquestrada, para quem a encomendou, o empresário musical e dono da companhia Ballets Russes Sergei Diaghilev. Diaghilev, ao ouvir essa versão para dois pianos, teria dito "É uma obra prima, mas não é um balé, é uma fotografia de balé". E nunca montou a dança, que só teria sua primeira encenação em 1926, pelo Balé Ida Rubinstein. Que se deixe estar, a obra aparece muito mais como peça de concerto, sendo uma das obras mais aclamadas de Ravel. Desde a época, apocalíptica La Valse foi enxergada por muitos como um retrato da 1ª Guerra Mundial, devido ao fato de ela começar comportada e quietinha e ir se distorcendo, virando um monstro dissonante e arrepiante. Ravel sempre sustentou que ela era, na verdade, uma homenagem à valsa vienense. Sobre as interpretações de Nelson e Martha, são de dois músicos lendários, que sabem extrair da partitura a última gota de sensibilidade, carisma, potência e delicadeza. A própria La Valse é um exemplo disso. Ela tem todas essas qualidades, ao longo de seus 12 minutos. Com os dois pianistas, ela se torna quase a versão orquestral, com todo seu colorido, sua riqueza e integridade sonora e sua majestade.


- Outras gravações importantes de Martha Argerich (ou eu vou ficar aqui o dia todo):


- Sergei Rachmaninoff - Concerto para Piano Nº 3 e Piotr Tchaikovsky - Concerto para Piano Nº 1 - com a Orquestra Sinfônica Alemã de Berlim, regida por Riccardo Chailly (no Rachmaninoff) e a Sinfônica da Rádio Bávara, dirigida por Kirill Kondrashin. Os dois concertos foram gravados em épocas diferentes e reunidos nesse CD-Coletânea.


- Ludwig van Beethoven - Concerto para Piano Nº 1 (junto à Sinfonia Nº 1) - Com a Orquestra de Câmara Mito, regida por Seiji Ozawa.


- Frédéric Chopin - Sonatas para Piano Nos. 2 e 3.


- Frédéric Chopin - Os 26 Prelúdios (os 24 do ciclo e mais 2, escritos separadamente).


- Música para Dois Pianos - Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em Ré Maior para Dois Pianos; Franz Schubert - Variações Sobre um Tema Original e Igor Stravinsky - A Sagração da Primavera.


- Johann Sebastian Bach - Sonatas para Viola da Gamba e Cravo Nos. 1 a 3 (transcritas para Violoncelo e Piano) - Com Mischa Maisky.


- Johann Sebastian Bach - Tocata em Dó Menor, Partita Nº 2 em Dó Menor e Suíte Inglesa Nº 2 em Lá Menor.




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