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  • Foto do escritorAndré Pinheiro

Sobre dragões em garagens


Carl Sagan

Tenho escrito sobre os riscos de se acreditar em afirmações falsas (tanto sobre os supostos argumentos do movimento antivax como em fake news de um modo mais geral) e me senti na obrigação de escrever sobre ceticismo. Mais especificamente sobre ceticismo cientifico. Esse termo foi cunhado por Carl Sagan, um dos maiores divulgadores da ciência de todos os tempos, que inspirou muitos jovens a seguir a carreira cientifica, eu incluso. Sei que falar sobre esse assunto sempre causa um certo desconforto, pois é exatamente nesse ponto em que percebemos que a maioria das pessoas não gosta da ciência. Elas gostam das descobertas, dos produtos da ciência. Mas não são muito fãs das perguntas que a ciência faz. Para começar preciso citar outra frase de Sagan: “A ciência é mais que um corpo de conhecimento, é uma forma de pensar, uma forma cética de interrogar o universo, com pleno conhecimento da falibilidade humana.” Mas porque essa forma de pensar causa incômodo? E qual a ligação com dragões em garagens? Vamos por partes.


Em seu livro intitulado o Universo assombrado por demônios, Sagan sugere a seguinte situação. Um belo dia alguém que você conhece te diz que tem um dragão morando na garagem. Você decide ir até lá e não vê dragão nenhum. Mas seu amigo insiste que esse dragão é invisível, o que explica satisfatoriamente o fato de você não conseguir ver o tal dragão. Você põe farinha no chão para ver as pegadas, mas seu amigo te informa que esse dragão flutua. Aí você sugere que se jogue tinta em cima dele pois assim vai ficar visível. Mas seu amigo te informa de que esse dragão é etéreo, imaterial, a tinta não grudaria nele. De forma que não há como detectar aquele dragão. A essa altura você deve estar duvidando da seriedade ou da sanidade do seu amigo não é mesmo? É fácil ver nesse caso como o ceticismo pode ser útil e importante para não se deixar acreditar em afirmações infundadas. São necessárias provas irrefutáveis para aceitar essa afirmação como sendo parte da realidade. E simplesmente aceitar qualquer afirmação desse tipo pode ser perigoso além de ridículo. Portanto você diz ao seu amigo que quando ele puder detectar e fornecer alguma prova você irá acreditar. Assim como um amigo que acredita em signos, o dono do dragão tem uma crença que para você não faz sentido. Mas não parece tão grave.


Agora imagina que além do seu amigo tem mais gente acreditando nisso. Não só que aquele dragão é real mas que todas as casas do mundo tem um dragão indetectável na garagem e que trazem presentes e enfeites para eles. Loucura não? Imagine que a crença ficou tão popular que não acreditar nela te exclui de grupos, deixa pessoas furiosas, faz com que duvidem do seu caráter. Adicione a isso o ingrediente emocional. Uma geração se passou e agora temos pessoas que foram criadas desde a infância acreditando nesses dragões. Eles absorveram esse ensinamento de maneira emocional, ouviram histórias sobre os dragões salvando a humanidade, essas histórias ajudaram a moldar o caráter delas. Agora quando você tenta explicar que as coisas acontecendo na vida daquela pessoa não dependem da vontade dos dragões, você também estará dizendo a ela que muitas das belas lições que seus pais lhe ensinaram sobre a vida são baseadas em afirmações sem sentido. Que mesmo sendo as pessoas que ela mais ama e admira eles estavam errados em relação ao que acreditavam e ela também está. Carl Sagan nos desafia a manter um estado mental cético, porém aberto a novas ideias e possibilidades. Afinal, você não teria problemas para acreditar na existência dos dragões se eles deixassem pegadas na farinha. Se cobrir o dragão de tinta deixasse ele visível, e se fosse possível interagir com eles, não teria nenhum motivo para discordar do seu amigo. Nesse caso o ceticismo cientifico nos diz para aceitar os dragões como realidade. Por mais incrível e surreal que seja a existência de dragões, se existem provas que não podem ser refutadas então eles são reais.


Não importa quantas pessoas aceitem esse fato ou não. A primeira coisa que quero salientar é a importância da análise de evidências. Principalmente quando queremos acreditar em algo. Alguém que jamais perdeu um amigo ou um parente vai ter maior dificuldade de acreditar em comunicação com mortos do que alguém que perdeu pessoas queridas. O fato de uma afirmação parecer agradável ou reconfortante deve ser o primeiro sinal de que precisamos analisar com mais cuidado, pois somos naturalmente susceptíveis ao engano quando queremos acreditar em uma afirmação. A segunda coisa é que o número de pessoas acreditando em uma afirmação não deve ser usado como argumento para validar uma ideia. Entretanto a ideia de pertencimento a um grupo é tão forte que esse argumento é usado inúmeras vezes em nossa sociedade na ideia de que um produto mais consumido é o melhor. Para reforçar essa ideia vale até criar estatísticas e afirmações fantasiosas ainda que contraditórias, (a pasta de dente indicada por 9 a cada dez dentistas aparentemente não é a pasta mais indicada pelos dentistas). A ideia de que a maioria não pode estar errada é explorada também em discursos políticos que chegam a distorcer o conceito de maioria para defender a legitimidade das suas imposições de ideias. Um grande exemplo é nosso atual presidente dizendo que as minorias devem se curvar a vontade da maioria. Para essa frase fazer sentido ele teria que ser pronunciada em mandarim.


Sem o cuidado de fazer questionamentos céticos diante das informações que nos são apresentadas acabamos vulneráveis. E por mais que você possa pensar que acreditar em fantasias pode ser inofensivo, saiba que sempre pode ser perigoso viver fora da realidade. Quer ver? Imagina esse grupo de pessoas formando uma bancada no congresso para que seja obrigatório que todos raspem a cabeça, afinal dragões invisíveis odeiam cabelo. E quando você menos espera existem dois grupos brigando até a morte porque segundo um grupo os dragões invisíveis não podem ter cor, pois são invisíveis. Mas outro grupo, apesar de não verem os dragões, tem fé que eles são amarelos. E quando as políticas públicas forem guiadas por alguém que afirma ter conversado com um desses dragões, não em uma garagem mas em cima de uma goiabeira? Pois bem, apesar de ser muito louca essa história tem vários paralelos com a realidade.


É por isso que o ceticismo cientifico causa tanto desconforto, porque revisar de forma crítica nossos conhecimentos e nossas visões de mundo exige maturidade, disciplina e nunca será mais fácil do que aceitar sem questionar. Questionar é o trabalho básico de um cientista. Por isso cientistas no mundo todo estão nesse momento tentando achar furos ou erros e imprecisões nas afirmações cientificas mais básicas e relevantes. Porque se você descobre que Einstein estava totalmente errado sobre a relatividade e consegue provar isso, você não vai ser agredido, ninguém vai duvidar do seu caráter. Eles vão te dar um prêmio Nobel. Você será lembrado como um dos grandes nomes que nos ajudaram a entender o universo. Então se você acredita em energia dos cristais, signos, homeopatia ou feng shui, entenda que é uma crença sem bases sólidas. Portanto sua crença num judeu zumbi de dois mil anos, que é um terço de Deus e veio numa missão suicida pra te salvar da maldição do homem de barro que comeu a fruta mágica, não é melhor do que o amigo imaginário de ninguém. Mesmo que pareça inofensivo, repense se a atitude de aceitar matar seu próprio filho porque ouviu uma voz na sua cabeça deve ser considerado um gesto de fé. Questione. Faça perguntas. Faça uma geral na sua garagem. E se no final ainda sobrar algum dragão por lá lembre-se que ter uma crença é como ter um pênis: isso não é um problema em si, contanto que você não tente enfiar ele nas pessoas à força.




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André Almeida


André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas

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