Você provavelmente conhece o termo fake news. Esse termo, que tem popularizado o estrangeirismo em nossa língua, surgiu como um fenômeno mundial. Mas o que aconteceu com a mentira? A lorota? A conversa fiada? Porque esses termos tão antigos parecem impróprios para esse caso? O que mudou entre a mentira clássica e a atual? E qual a relação da ciência com isso? Antes de mais nada vamos descrever esse fenômeno. Tudo começa com a pós-verdade, que na Wikipedia é definida assim: "Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais”. Essa descrição nos mostra o verdadeiro espirito de luta por corações e mentes envolvidas. Mas já vimos um clima assim antes. Já vimos notícias sobre a cadela Laika feliz cruzando o espaço em sua nave, quando, na verdade, a cadela morreu cozida com as altas temperaturas dentro da nave, que atingiram algo em torno dos 90 graus durante a decolagem. Qual a diferença entre essa mentira e a mamadeira de piroca? O contexto. A mentira sobre a cadela no espaço foi contada com o objetivo de demonstrar a superioridade soviética durante a guerra fria. Em um momento em que a imprensa era controlada pelo estado, ou ao menos era controlada por oligarquias midiáticas.
Perceba, caro leitor, que o fenômeno que estamos aqui descrevendo não surge junto com a ideia do estado mentindo para a população. Surge com a democratização da mentira. Mas como assim democratização? O povo sempre foi livre para mentir também, não é? As mentiras mais clássicas não são contadas pelos governos. Todos nós podemos lembrar de alguma como: “vou dormir só 5 minutos”, “vou botar só a cabecinha”, “na volta a gente compra”, "eu estou grávida, mas ainda sou virgem, esse filho é do Espírito Santo". Mas quando as redes sociais trouxeram o poder de alcançar multidões para as mãos do cidadão comum, as mentiras ganharam um poder fora do comum. E para entender o porquê disso vamos falar sobre a lei de Brandolini, ou o princípio da assimetria dos idiotas. Tal princípio foi inicialmente observado para sistemas operacionais e diz basicamente que a energia necessária para introduzir um erro em um sistema é ao menos dez vezes menor que a energia necessária para corrigir esse mesmo erro. E isso parece se aplicar perfeitamente para explicar as fake news.
Para ilustrar isso basta olhar para o caso da cloroquina. O trabalho de criar a mentira de que era possível tratar o covid-19 com cloroquina só precisou de uma afirmação sem qualquer evidencia vinda de alguém que é seguido por muitos, nesse caso o presidente. Mas para refutar essa afirmação foram necessários meses de trabalho árduo de cientistas altamente qualificados que gastaram muito tempo e dinheiro se dedicando ao assunto para dizer categoricamente que não é existe. Imagine a diferença de esforços entre os cientistas que constroem um satélite para tirar fotos do nosso planeta a milhares de quilômetros provando que a terra é redonda. E o terraplanista que tira uma foto de uma régua no horizonte “provando” que a terra é plana. Não é de surpreender que, no campo da burrice, a ciência esteja em grande desvantagem. Mas é extremamente preocupante que batalhas tão importantes para o futuro da humanidade estejam sendo travadas nesse campo.
Mas qual é o plano? Vencer pela mentira? Fazer os cientistas desistirem? O plano é o bom e velho divide et impera, ou dividir para conquistar. Se as mentiras começam a ser desmentidas, isso enfraquece a estratégia inimiga, certo? Errado! A estratégia por trás das fake news a longo prazo não é te fazer acreditar numa mentira, é te fazer duvidar da verdade. Quando você começar a duvidar de todas as informações que chegam até você, tratando elas como uma mentira em potencial, o que você usará para distinguir o verdadeiro do falso? O que vai sobrar quando toda a credibilidade associada às informações tiver sido dissolvida em um mar de mentiras? Sentimentos. Exatamente isso. Quando você não souber mais em quem acreditar, sobrará apenas a sua vontade de crer. E é precisamente nesse ponto que a sociedade como a conhecemos estará pronta para ruína. Para entender porque vamos voltar à mamadeira de piroca: podemos dividir a população exposta a essa mentira em dois grupos, os que enxergaram uma mentira das mais absurdas, e os que estão preocupados com o avanço de um movimento comunista gayzista que usa mensagens subliminares para espalhar o comportamento homossexual para, de alguma forma misteriosa, usar isso para dominar o mundo. Como reconciliar essa população? Para os dois grupos, apenas ouvir a opinião do outro lado já é flertar com a insanidade, mas, para um político mal intencionado, é perfeito. Afinal quem teria tempo para discutir privilégios da classe política, ou o corte de verbas da educação quando a própria realidade está sendo questionada? Como discutir balança comercial em um cenário onde seu filho está sendo manipulado por professores satanistas que pretendem influenciar a forma com que ele fará sexo no futuro? Com pessoas presas em realidades alternativas, que se montam com o somatório das notícias que os seus sentimentos as levaram à acreditar, é fácil manipular as massas. Com o tempo, os discursos se radicalizam ainda mais e surge essa verdadeira profusão de fanatismo que já estamos vivendo. E o pior é que só tende a piorar, pois como diria Carl Sagan: “Não é possível convencer um fanático de coisa alguma, pois suas crenças não vem de uma análise lógica de fatos, mas de uma profunda vontade de crer”.
Mas até a ciência vai ficar à mercê disso? Numa sociedade onde a própria ciência chegou até as pessoas, não explicando suas conclusões com argumentos racionais, mas sendo vendida como a dona da verdade, é fácil ser anticientífico. Digo isso pela forma que a ciência foi trazida até nós na escola. Que argumentos usaram para te convencer que a terra é redonda? Aposto que foram os mesmos que usaram pra te convencer que manga com leite faz mal. Alguém que possui credibilidade te deu essa informação e você aceitou, não porque fez sentido, não porque demonstraram de forma experimental. Mas porque você estava no meio de um grupo onde questionar essas afirmações te custaria ser o motivo de piada para todos os demais. Sua noção de realidade nunca foi construída de forma questionadora, aceitando apenas os fatos que não podem ser negados experimentalmente. Dessa forma fica fácil acreditar que a terra é plana, só é preciso te colocar sobre as mesmas condições e, dessa vez, descredibilizar quem te trouxe a informação de que a terra é redonda. Infelizmente a mentira parece mais ligada à natureza humana do que a busca pela verdade. Um colégio que ensina a criança a obedecer e acreditar feito um soldado é considerado um grande exemplo a ser seguido. E assim, com uma junção de fatores perversos, nossa sociedade caminha para o caos onde a própria realidade está em risco. Mas, como diriam os defensores da pós verdade: essa é apenas a minha opinião.
André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas.