top of page

Conto que Deveria ser Música II - Paulista

  • Foto do escritor: Rafael Torres
    Rafael Torres
  • 22 de jun.
  • 11 min de leitura

Por Rafael Torres


Fiquem com mais um conto que estará presente no meu romance (sim!) Contos Medonhos e Desarranjados, Op. 1 - A Ilha Vermelha.



Ney vinha subindo com seu fone e achando a rua Augusta muito sem movimento. Tudo bem que era domingo e estava perto do Ano Novo. E que tinha a pandemia. E que eram 6h da manhã. Mesmo assim, era totalmente atípico aquele vazio. Quando viu, em frente, um rapaz de terno e chapéu, ficou mais aliviado. Só em saber que o mundo ainda estava funcionando. Ele usava máscara anticovid, assim como Ney. Mas, quando passou por ele, ele tentou agarrar seu braço.


— Que é isso, meu? — Ney reagiu, assustado.


O homem colocou as mãos nos ouvidos, sinalizando para Ney tirar os fones. Os lábios dele se moviam por trás do pano, mas o fone tinha cancelamento de ruído, Ney não escutou nada. E nem queria escutar. Pôs-se a andar, novamente. Quando olhou para trás, o indivíduo vinha, ainda gesticulando.


Ney andou o mais rápido que pôde e entrou na avenida Paulista. O outro dobrou também. Que inferno! Agora, os dois quase corriam. Em uma pausa na música ele escutou: moça! Moça? Ele tinha feito a transição recentemente, caríssima, e ficou mais transtornado do que supunha que ficaria ao ser chamado daquilo.


Ney começou a correr com força, sem olhar para trás, até chegar no vão do MASP, em que ele sabia que teriam vários seguranças. Parou, esbaforido, na frente de dois deles.


— Está tudo bem, senhor?


— Sim, sim — ele mal conseguia falar — Tem um homem me seguindo.


Olhou para trás e o sujeito vinha, agora calmamente, em sua direção. Naquela hora começou um temporal em São Paulo. Daqueles.


— O Agenor? — o guarda perguntou, sorrindo Ô Agenor, assustando o rapaz, mano?


Agenor se aproximou e cumprimentou os seguranças, que pareciam felizes em vê-lo. Ney estava confuso, mas não tinha mais medo. Os homens estavam rindo.


— Esse aqui quase me escapa! — Agenor riu — Por que correu, figura?


— Ora, achei que fosse me assaltar!


— Eu tenho cara de assaltante? — Ele parecia realmente espantado.


Cara de assaltante? — Ney começou — Meu caro, eu não julgo as pessoas pelas aparências, isso é preconceito. Um preconceito que você é que parece ter — ele ainda bufava. — E você me agarrou no meio da rua!


Chamei e você não respondeu.


Ney se lembrou do fone com cancelamento de ruído. Aliás, lembrou que tinha deixado cair um quarteirão atrás. Sennheiser, 2.500 reais... Ai, que ódio! Entretanto, teve uma surpresa quando Agenor lhe estendeu o mesmo fone preto. Que alívio sentiu!


— Podemos conversar? — O homem, agora, parecia inofensivo.


Ney parou um pouco para respirar, conferir se o fone estava bom (estava) e analisar a situação. Olhou bem para o rapaz. Devia ter 30 anos, mas não dava para ver bem atrás da máscara. Seu modo de vestir (um terno branco) era atemporal. E o temporal? Não dava para sair agora debaixo daquele imenso museu.


— Está bem, vamos nos sentar ali — Escolheu um lugar perto da bilheteria.


— Primeiramente, deixe eu me apresentar. Agenor, às suas ordens! — E estendeu a mão.


— Por que me chamou de moça? — Ney ofereceu um braço curto ao homem.


Agenor parou, pareceu pensar e disse:


— É que eu te conheci... Eu sei que era você. Mas...


— Mas era uma mulher! Qualé, meu?


Quase. Sou de Pequiá, pertinho de Qualé. E, antes que me pergunte, eu não sou o Boto. Esse é meu amigo.


Que informação doida, pensou Ney. Mas resolveu perguntar:


— Que seja. O que quer comigo?


— Achei você perfeito para um projeto.


Como assim? Você me conhece de onde?


— Da avenida, da Paulista. Todo domingo você vinha por aqui. Aí, parou de vir. E, quando voltou, voltou...


Homem! — Ney não tinha saco para essas coisas — Pois fique sabendo que eu sempre fui homem mas só recentemente meu corpo foi reacomodado.


— Mas que belezura! Não sabia que hoje dava para fazer isso. — Agenor parecia entusiasmadamente surpreso. — Você é homem porque escolheu! Maravilha.


Ney foi baixando a guarda e se deixando tomar pela curiosidade com aquela figura. Pela sua aparência, ele podia ser de 1930. E, pelo visto, também ficou surpreso com a “modernidade” sexual de Ney. Devia vir de uma cidade muito pequena.


— Você falou que vinha de? – perguntou Ney.


Pequiá, perto de Qualé.


Onde fica isso?


— Ah, minha Pequiá... É quase um Eldorado. Bem dentro da floresta.


— Que floresta? — Ney estava ficando curioso.


— A Amazônia, a floresta.


— Tá, tá bom. — Achava aquela conversa muito estranha. Nunca tinha ouvido falar em Pequiá, perto de Qualé. Deviam ser localidades bem pequenas.


— Pois bem, como eu ia dizer, tenho um projeto muito importante — Esperou pela reação, mas Ney não falou — Eu vi, um dia, você, carregando um baixo e pensei: Poxa, encontrei! É perfeito!


— Eu toco baixo... — Lembrou que já fazia muito tempo que não tocava. — Mas eu sou perfeito para quê?


— É uma banda. Banda cover. Você é meu Paul McCartney.


Ney estranhou. O mais engraçado é que ele era alucinado pelos Beatles.


— O senhor já tem os outros três? — interessou-se.


Sim. Eu mesmo sou o Ringo. — E tirou a máscara e o chapéu.


Era mais alto e mais bonito, mas lembrava mesmo o Ringo Starr. Menos na aparência do que na própria “aura” que emanava. Muito estranho.


— Esse seu projeto... Já tem gig?


Gig? Nem sei o que é isso.


— Se já tem um lugar pra tocar!


— Olha, tem e não tem. Calma, eu explico. O nome da banda é The Beatles — e Ney pensou no absurdo de chamar uma banda cover pelo mesmo nome da banda homenageada — A gente não vai ficar fazendo show. Quer dizer, não só isso.


— Ué, vai fazer o que, então?


— Vamos ser os Beatles. — Agenor sorria igualzinho ao Ringo. E a voz era idêntica.


— Mas eu ainda não entendi nada. Pra começar, por que achou que eu gostava dos Beatles ou era adequado a essa sua banda?


— Como dizia um amigo meu, “quem gosta dos Beatles, mal sujeito não é”.


Ney lembrou que tinha ouvido exatamente essa frase quando visitara o museu da banda em Canela, no Rio Grande do Sul. O proprietário do lugar ficava na entrada, conversando, falando e até planejando viagens para Liverpool e Londres. Um roteiro Beatles, que ele já tinha feito, mas queria fazer de novo, várias vezes.


— Sim, mas a pergunta é, justamente: como sabe que eu gosto dos Beatles?


— Eu só sei!


— Como assim?


— Sabendo, eu senti.


Como é?


Gosta ou não gosta?


Gosto — Ney se rendeu. — Mas não sabia que isso transparecia.


— Você exala Paul McCartney.


Ney respirou fundo. Aquela conversa, pensava, não levaria a lugar algum.


Noronha — o homem soltou.


— Quê?


— Fernando de Noronha – Agenor falou, de uma vez.


— Que que tem?


— Estão precisando da gente lá.


— Meu, eu faço faculdade, tenho uma namorada, estava até indo pra casa dela. Qualé?


— O que tem Qualé?


— Qualé? – Ney perguntou, cada vez mais confuso.


— Pertinho de Pequiá.


— Não. Nada. Esquece.


— Pois bem, vá se despedir da sua namorada, que partimos hoje ainda.


— Cê tá louco? — Ney ria.


— Louco, ainda não — ele falou com aquele sorriso.


— Tá. Digamos que, você oferecendo muito dinheiro, eu fosse. Teria de largar tudo aqui em São Paulo. Precisaria de tempo.


— Vai largar.


— Como assim? Você nem me conhece!


Apesar de ter dito isso, Ney começava a sentir que conhecia muito bem aquele homem. Uma afinidade de eras. Uma saudade visceral o abateu, de repente, quando perguntou:


— E o John?


— Ah, esse é o Boto.


— Que boto?


— O Boto. Meu vizinho.


— Qualé, meu?


Isso, o Boto é de Qualé. Uma vez ele estava tão bêbado que pegou uma faixa onde tinha escrito “Bem-vindo a Pequiá” e escreveu “Melhor atração de Pequiá: ir até Qualé” — Agenor riu sozinho.


— Ai, que seja. Vamos recapitular: você quer que eu vá hoje pra Fernando de Noronha para me juntar a uma banda cover dos Beatles e, simplesmente, porque eu “exalo Paul McCartney”?


Exatamente! — Ele sorria com simplicidade.


— E antes de eu me transformar? Exalava?


— Desculpa, você se transforma em que mesmo? — Agenor estava curioso.


— Mano, eu era mulher, sacou? E virei homem! — Ney falou legitimamente tentando explicar aquilo para o cidadão, sem perder a paciência.


— Ah! E pode voltar a ser mulher? Fantástico! Exala. Exala Paul McCartney, homem ou mulher.


— Cê tá louco... — falou baixinho — O John está lá?


— John é o Boto, né? Deve estar engravidando alguma mocinha por aí.


— Em Qualé? Aliás, Pequiá?


— Não. John está convocando o George nesse momento. Em Natal.


As menções desses nomes trouxeram ainda mais saudade a Ney. Sentia-se admitidamente curioso.


— Ele está convocando o George ou engravidando mulheres?


— Ah, a gente manda ele fazer uma coisa e parece que, de cada duas atitudes dele, uma é engravidar alguém.


— Isso é louco! Ele assume esses filhos?


Todos. Já tem mais de 18. E as mães ficam lisonjeadas de ter um filho com o Boto.


— Quando você diz Boto, refere-se ao Boto Cor-de-Rosa, da Amazônia?


— Esse aí.


— Mas isso não existe! Que papo mais doido, meu.


— Ele não se transforma mais em boto. Botou na cabeça que é o John Lennon.


Ney ainda estranhava aquele cidadão e a conversa toda, mas a sobrenatural saudade que sentia de companheiros que nunca vira... era como se fosse, de fato, Paul McCartney, ansiando em ver companheiros que não via havia muito tempo.


— Eu posso até ir passar o feriado de Ano Novo. Conhecer Noronha.


Pisou lá, não volta.


— E, pra completar, vai querer me prender?


— É só a minha sinceridade.


— Mas eu não posso sair de São Paulo assim. De quanto dinheiro você está falando?


— É mais que dinheiro. É uma vida. A gente vai criar, gravar, dar continuidade ao trabalho. Recomeçar de onde parou.


Ney começava a achar a ideia sugestiva, ousada. Ele já estava com uma ideia para o próximo álbum. Espera, que próximo álbum? Começaram a aparecer memórias que ele nunca tivera, mas que eram tão reais!


— Ele me mandou lhe perguntar uma coisa, o John.


— O quê?


— Se você ainda pensa nele, vez por outra.


Ney estremeceu. Essa fora a última coisa que o John Lennon de verdade havia dito ao Paul, antes de morrer. Não sabia o que esperar, só queria conhecer o seu parceiro.


— Eu... — hesitava — Tenho de fazer as malas e pegar o baixo.


— Tem não. Lá tem tudo.


— Mas eu não estou nem com dinheiro.


— Não se preocupe. O Ringo aqui tem todo o dinheiro do mundo.

 

Naquele dia partiram para Fernando de Noronha. Ney deixou uma carta para o pai, com quem tinha uma boa relação, e demorou a perceber que escrevia com a mão esquerda! Tentou voltar à direita, mas o garrancho que saía era incompreensível. Ôxe! Ney não sabia o que pensar. No voo, surgiu-lhe uma melodia na cabeça, igualzinho a uma balada do Paul.


Surgiu do nada. Ele nunca tinha composto nenhuma canção. Em que quer que tivesse se metido, era tarde para retroceder. E, por incrível que parecesse, não queria retroceder.


O avião decolou em meio a uma tempestade. Daquelas. Mas em meia hora o céu estava azulzinho, como ele adorava. O tempo passou rápido. A conversa com Ringo era tão agradável e aconchegante! Por que tiveram que se separar?


De repente:


Atenção, senhores passageiros, eeeh, por motivo de tempo ruim, não poderemos, eeeh, pousar em Fernanoronha. Estamos desviando a rota para a cidade de Natal, onde aguardaremos até que o aeroporto possa receber voos.


Poxa vida! Pensou Ney. Agora, estava mais curioso do que nunca...


— Ah, mas foi bom a gente parar em Natal. Tenho uma surpresa para você — disse Agenor.


Em Natal, foram até uma área vip do aeroporto, onde Agenor sacou uma chave e abriu um armário. Tirou uma caixa de instrumento, pôs no chão e abriu.


— Esse aqui não é um baixo comum — disse Agenor. Ney, que reconhecera o instrumento de imediato, estava emocionado — É o baixo em forma de violino que Paul perdeu em 1969. O Cavern Höfner, o próprio!


— Como você achou isso? — Ney perguntou, desnorteado.


— De um sujeito muito louco chamado The Keeper, no Canadá. Quando ele viu o John, o Boto, deu a ele de graça. E, ainda, chorando e pedindo perdão.


— É inacreditável. E o que ele faz aqui no aeroporto de Natal? A gente não ia direto para Noronha?


— Sim, mas o John ia passar por aqui e levar. — Já chamava o companheiro de John e de um modo que nem chamou a atenção de Ney.


Ney não sabia se estava sonhando. Conhecia cada posição dos captadores e das alavancas daquele baixo, era o Höfner 500/1 de Paul. E agora era seu. Era bom demais para acreditar.



Estavam tomando um café, ainda no aeroporto, quando Agenor/Ringo gritou:


John!


Ney se virou e viu dois homens vindo alegremente em sua direção. Usavam terno e gravata dos anos 60. O de lábios finos e olhos puxados também “emanavaJohn Lennon. O outro era um magricela, um pouco mais sério. George Harrison dos pés à cabeça.


Ney olhou para Agenor e viu que, agora, ele realmente parecia o Ringo, em todas as suas feições. O que veria se olhasse no espelho? Pegou o celular e ligou a câmera frontal. Sim, ele era Paul McCartney. Não tinha mudado as feições que sempre tivera, apenas essas feições eram percebidas como as de McCartney.


Mister Paul McCartney, o senhor está muito decente hoje! — John riu.


Ney só conseguiu dar-lhe um abraço silencioso.


— O que foi que houve, sua bicha? — John sorria, mas retribuiu o abraço. — Está eriçada?


— Me parece que faz tanto tempo... — Ney estava emocionado.


— Pois bem, eu já tenho o nosso próximo single — E se sentou com um violão de cordas de aço e cantou uma música que lhe lembrava as do disco Revolver. Então eles eram os Beatles antes dos desentendimentos. Será que teriam o mesmo destino da banda original? Perguntou isso, discretamente, ao Ringo.


Não — e falou baixinho — eu pedi para ele se certificar se o George estava plenamente comprometido. E não tem Yoko — ele riu — Nem empresários.


— E então, Mr. McCartney — perguntou George. — Pronto para a nossa aventura brasileira?


Foi só então que Ney percebeu que todos falavam em inglês. E com sotaque de Liverpool.


— Vamos ver no que isso vai dar — sorriu Ney.


Aliás, Ney, não. Dali em diante ele era Paul.


Em uma certa altura apareceu um cidadão gordo e malvestido.


— Os señores son los Beatles?


Sim, somos — Ney respondeu, orgulhoso.


— Temos uma lancha os esperando en el cais.


Melhor ainda”, pensou Ney. Nada mais Beatle que uma lancha!

 


Continua...


Fique à vontade para comentar o que você acha. Quando o livro sair, farei o estardalhaço que se espera.


Para comentar, basta rolar abaixo e encontrar uma caixa de diálogo vermelha.


A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

2024

  • Instagram
  • Facebook ícone social

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, entre em contato conosco.

DIRETRIZES DO SITE

bottom of page