Conto a Respeito de Euclides
- Rafael Torres
- 27 de jun.
- 10 min de leitura
Atualizado: 29 de jun.
Por Rafael Torres
Fiquem com mais um dos meus Contos Escabrosos e Desarranjados, um livro (não de contos) cujo vol. 1 - A Ilha Vermelha, será lançado em breve.

Conto a Respeito de Euclides
Era impressionante que Euclides soubesse exatamente como caíra o avião, mas não soubesse como chegara àquela terra. Estava enterrado, só a cabeça sobrava para fora. Não podia se mexer. De repente a areia começou a se mover, fazendo movimentos ondulantes, e praticamente, o catapultou. Foi jogado com muita força para frente. Sorte que não tinha nada lá. Estava inteiro. Até os óculos. E toda a roupa do corpo. Notou seu boné vermelho e preto no chão, coberto de areia... “...ta que pariu!” Não havia nada mais.
Aliás, tinha, sim. O xale. O que compara para sua mãe. Esvoaçava, preso a um galho no chão.
Tinha chamado atenção de Euclides na lojinha do museu. A moça dissera que era um fino artesão de Lisboa. Quem sabe a mãe aceitasse como pedido de desculpas... Ou não. Talvez fosse melhor para ela se ele tivesse morrido na queda... Mas por quê, logo esse xale, sobrevivera à tragédia?
Euclides estava seco e o xale, também, o que era um pouco estranho.
Olhou em volta. Ilha deserta? Nada indicava que não ou que sim. Ele podia estar em pleno continente, a metros de alguma casa com piscina.
Opa! Não, não era ilha deserta, mesmo. Logo à frente havia um poço. Um belo e humano poço, com balde e cordinha. Euclides estava com sede. Buscou e bateu a terra do boné, caminhou sem dificuldade até o poço, desceu o balde e o levantou pesado de água. Doce. Quase gelada! Sorveu beirando a felicidade.
Felicidade que passou quando a memória foi clareando. Que acidente infeliz! Lembrava de alguém na cabine comentar que devia estar vazando combustível. Estranho... Lembrava de o avião ter pousado na água e quase imediatamente começado a afundar. Ele estava mais ou menos perto da porta de emergência, que simplesmente abriu e saiu. (Euclides não queria lembrar, mas havia passado por cima de um monte de gente para chegar até a porta.)
Uma criança agarrou sua mão e ele se desvencilhou. Lembrava de, no mar, ter chamado por alguém e da frustração intensa que sentiu quando viu um corpo virado para baixo, sem vida... Euclides soltou um grito, quase um uivo, e então, só lembra do branco. Nada.
Pensando agora, nem conseguia lembrar por que tinha ido a Portugal. Tinha ganho a viagem? Isso! Tinha ganho em uma promoção do shopping center. Recebera o prêmio de uma sra. Ruth. Fora sozinho? Não lembrava, não lembrava nada, tudo estava turvo.
Acordara ali, uns bons 30 metros terra adentro, o que era muito esquisito, e vizinho a um poço. Será que estava com amnésia?
Mas também, era só isso. O poço, ele, xale, boné, mar, areia, óculos e uma densa floresta verde, de altas árvores não tropicais e sem palmeiras, depois da praia. Parecia a taiga, do norte. Ele não estava nem um pouco cansado, tinha que fazer alguma coisa. Agora, qual era o problema de Euclides? O problema é que ele era totalmente desorientado. Se entrasse demais na mata não saberia voltar para aquele ponto específico. E aquele ponto específico tinha água!
Andou só um pouquinho. Só uns 20 metros, mata adentro. E se sentiu mal. Não era medo, era uma coisa mais forte. Era a sensação de perigo. Alerta. Ele só viu mais árvores. Voltou resolvido a ficar ali, mesmo. E, na volta, ainda achou o que comer. Um iguana, dando sopa. Não gostava muito de répteis, mas era o que tinha. Levou folhas, gravetos e voltou para o poço.
O que Euclides fez para sobreviver não será abordado aqui, pois não é a questão. Ele fez e sobreviveu.
Mas, depois de cinco dias, já não aguentava mais. Iguana, água e a sensação de que podia estar a trezentos metros da civilização.
Teve o delírio louco de ter ouvido uma sereia cantando bossa nova, e estava acordado.
Dormindo, era ainda pior. Via a imagem de uma linda mulher morena, grávida, que, de repente, apontava um dedo para ele e, desse dedo, saía um raio que lhe atingia bem na virilha, arrancando-lhe o mais tenebroso grito. Não conseguia dormir, essa é a verdade. E quando dormia, mesmo que pouco, acordava sendo arremessado da areia por alguma força desconhecida.

Começou a desenvolver ansiedade e pânico. Ficava acordado até não conseguir mais, caía no sono e era enxotado da terra. Tinha que sair dali. Estava se tornando muito complicado permanecer naquele ponto.
Por que não entrava naquela mata? Era covarde? Iria tentar. Vencer o medo. O asco. Olhou para dentro, o mais distante que podia ver, e sentiu um mal pressentimento. Era como se o destino mais terrível estivesse por ali. Mas ele já não tivera o destino mais terrível? O único sobrevivente de uma queda de avião? O que podia ser pior que aquilo?
Pois ele foi. Chegou o mais longe que tinha ido – os 20 metros –, respirou e foi além. O fato é que, mal começou, 300 metros tinha caminhado, e avistou a coisa mais inesperada. Uma caverna. Parou, olhou, espiou e quis entrar. Era alguma coisa, alguma sutileza da caverna, talvez um aroma. Que o fazia querer entrar. Foi adentrando lentamente, a luz ficando pouca, até virar penumbra, até se tornar só um pontinho, lá longe. Foi quando ele se deu conta do que estava fazendo. Estava desviando do plano. Encontrar a humanidade. Devia voltar.
Mas foi aí que aconteceu:
Sentiu uma mordida na sua mão, uma dor absurda, a luta para ver o que tinha feito aquilo, o desespero... E ele gritou, quase uivou. Conseguiu achar a saída após vários tropeços e, sempre correndo, quando viu, já estava no poço.
A mão! Faltavam-lhe dois dedos. Logo da direita... Que porcaria! Que droga! Não podia acreditar. Saía muito sangue. Ele a enrolou no xale e apertou com força. Não conseguiu deixar de soltar mais um grito. Uivo. Começou a passar mal, até que se estirou no chão, inconsciente.

Foi catapultado no outro dia, e com raiva. A excursão fora um desastre. Ele não sabia o que fazer. Aquilo ia gangrenar, apodrecer. Precisava ir atrás de cidade. Apertou o xale, pegou o boné, os óculos e foi. Ficou aliviado ao perceber que não estava tonto. Na verdade, sentia-se invadido por um inusitado vigor. Entrou na mata.
Mas então, quando viu, estava em frente à caverna. Só que ele jurava ter tomado outro caminho... E ela tinha algo, um aconchego, um fascínio... Ele sentiu a enorme necessidade de saber o que tinha ficado com um teco da sua mão. O que quer que tivesse sido era excelente caçador, não fizera ruído algum. Quem fizera fora Euclides. Aquele uivo não lhe saía da cabeça. Como se ele já tivesse ouvido antes. Seu próprio uivo. O mesmo do avião. Talvez fosse uma memória ancestral. Achou estranho que ainda quisesse entrar. A coisa mais estúpida a se fazer era exatamente a que ele estava prestes a fazer. A caverna era tão convidativa... Pois entrou.
E foi ficando escuro, escuro. Até que ele só via um pontinho de luz ao longe. E aconteceu de novo. Dessa vez, foi mordido na barriga. Arrancou-se um pedaço de carne. Gritou, uivou, urinou-se, correu para o poço e constatou que, embora saísse algum sangue, não tinha sido profundo.
Catou um iguana, assou e comeu. Com água!
E, agora, só conseguia pensar na caverna. Pensava nela quase vidrado! Que diabo de caverna seria aquela? Tão... majestosa! Majestosa? Era o inferno...! Mas sim, era magnífica. Tinha um não-sei-quê, um lirismo...
Encasquetou que tinha que matar a criatura, sem perceber o absurdo que era ele sequer considerar voltar ali.
Pois bem, mas como o faria? Ideia! Colocou uma pedra na ponta de um toco de madeira e atou com os cadarços e o xale, com muita dificuldade.
Aí, o nome do artista ficou exposto. Euclides, curioso, leu. Mas sentiu algo muito estranho. Nem com muito esforço conseguiria pronunciar aquele nome, aquela palavra simples... Parecia a coisa mais inimaginável de se dizer, até de se pensar. E o nome só podia ser brasileiro. O mais fino artesão de Lisboa era um indígena brasileiro?
Agora lembrava do desenho bordado. Um homem flutuando. Um espírito, um fantasma? Que arte era aquela?... Por que achara aquilo tão lindo? Ao ponto de lograr o perdão da mãe? Quem era sua mãe? Ela estava magoada com ele... Mas por quê?
Quando sentiu que seu tacape estava seguro começou a se deslocar rumo à caverna. Olhou para o iguana, no tronco de sempre. Não importava quantos já tivesse pegado, sempre aparecia um novo ali, no mesmo lugar. Aproximou-se da caverna, olhou, espiou e entrou.
Nem tinha ficado totalmente escuro quando ele sentiu, no calcanhar, a mordida. Gritou. Lutou, girou seu tacape cego por todo lado, com tudo que tinha. Com força, veloz, para baixo, para o lado.
Até que sentiu atingir algo com força e ouviu o som da coisa caindo no chão. Pegara? Matara? Euclides ainda sacudiu a marreta para todo lado, tentou buscar coisa no chão, não encontrou. Decidiu erguer seu taco e experimentar uma postura defensiva. E sentiu outra mordida, no peito. Uivou alto. A dor era insuportável. Mal pôde correr, mas de alguma forma conseguiu atingir o exterior da caverna. Caminhou com muita dificuldade até o poço. Lavou as feridas. Bem profundas. Doía muito, mas conseguia andar, como muita luta.
Agora, Euclides nem esperou a dor passar. Nem sentiu quando já estava na boca da caverna. Ele não percebeu que estava completamente fascinado, dominado por ela. Dessa vez, não levaria nada. Desfez o tacape e deixou tudo ali no chão: a pedra, o toco e o xale. Até os óculos. Entrou na caverna sem medo. Sem nada. Nu. Apenas com seu boné vermelho e preto. E seu membro sexual decepado. Ele o havia perdido em uma ocasião misteriosa. Euclides não tinha pênis e não lembrava como nem quando tinha perdido.
Dessa vez teve que entrar mais ainda, de modo que não via mais a entrada. Estava no completo breu. A mordida, agora, foi nas costas.
Mas teve uma coisa: ele não gritou, não deu um pio. Mas, ainda assim, ouviu o seu grito, vindo de longe. O seu mesmo grito, seu uivo. Alguém o soltara por ele. Mas não pôde pensar muito no assunto, perdeu os sentidos rapidamente.
A primeira coisa que ouviu foi o crepitar do fogo. Uma fogueira. Abriu os olhos e, lentamente, foi discernindo as figuras que a cercavam. Ele estava estirado no chão, a alguns passos de distância de um grupo. Ao redor da fogueira, um homem de meia idade, todo vestido de preto, uma mulher de altura mediana, de cabelos loiros. A mais bela que já vira. Um casal de indígenas, dois cachorros enormes, uma cobra gigantesca e uma velha, bem velhinha.
Ninguém olhou para ele, conversavam tranquilamente. Euclides sentia, sabia, que estava bem dentro da caverna. Via algumas pinturas rupestres, provavelmente de origem muito antiga. Euclides era funcionário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nunca ouvira falar naquela caverna. Mas também, talvez o avião não tivesse chegado ao Brasil. Talvez estivesse no meio do Atlântico.
As figuras desenhadas eram estranhas. Quando conseguiu enxergar melhor, viu carros, figuras monstruosas, aviões, barcos. E três pés interligados pelo calcanhar, formando a figura de um Y. Ficou fascinado por essa última pintura. Parecia antiga, mas era muito realista para ser milenar.
Nem reparou quando alguém se aproximou.
- É, é esse aqui – sorriu o homem de preto.
- Claro que é, falta‐lhe exatamente o que era para falar! – sussurrou uma mulher indígena, lindíssima.
- O quê? - perguntou Euclides. Será que se referiam a seu pênis?
Lá longe, ouviu-se um longo e desesperado grito.
- Esse grito é meu! – algo o deixava extremamente contrariado.
- Não é mais – o homem de preto falou, suspirando – Não é mais seu. Mas você poderá vê-lo toda noite.
- De quem estão falando? Do xale? O que será dele? – Euclides não compreendia.
- Vai berrar, ora! Vai bradar pela eternidade – a voz do homem de preto trazia uma estranha segurança a Euclides. Mas seu meio sorriso era agridoce.
- Onde ele está? O que grita por mim? O que é que está acontecendo? – Euclides procurava entender.
- Sabe, você esqueceu suas coisas na entrada da gruta – uma velha, recém surgida no seu campo de visão.
E Euclides lembrou da figura fantasmagórica desenhada no seu xale. Ganhara vida? Gritava?
- Pois toda noite vai poder tê-lo – falou o homem de preto.
- O que vai ser de mim? – implorou Euclides.
- Você é o miserável Corpo Seco – o homem de terno preto parecia desprezar Euclides.
- Mas o que é Corpo Seco? Com essas feridas, eu vou morrer!
- A gente não morre, não – a velha falou - A gente morre nunca! Quase nunca...
- Onde eu estou? – Euclides estava apavorado.
- Na caverna. Se quiser ser mais específico, em uma ilha na costa brasileira. Onde você vai passar uma boa eternidade.
E um cão gigantesco arrancou-lhe mais um pedaço.
Euclides nada sentiu. Mas, lá longe, alguma coisa soltou um longo uivo.
Continua...
Sinta-se à vontade para comentar o que você acha. Quando o livro sair, farei o estardalhaço que se espera.
Para comentar, basta rolar abaixo e encontrar uma caixa de diálogo vermelha.