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O home office

Foto do escritor: Nílbio ThéNílbio Thé

A ideia era trabalhar na rede. Sim, tem a rede de computadores envolvida, claro, mas na rede mesmo, herança dos nossos ameríndios que se preocuparam em ensinar os portugueses a fazer uma rede antes do genocídio começar, enfim.


Mas uma rede é apropriada ao trabalho? Pensemos, a gente gosta de inovar. Uma rede, mas SEM o travesseiro. Ela fica desconfortável na medida certa, porque não fica confortável o suficiente para dormir, mas não fica tão incômoda a ponto de não se conseguir usar o computador e ver todas as planilhas novas. Então a rede, nessas condições, deixa a gente num estado mínimo de alerta. E mais uma vantagem: se levantar da rede é mais trabalhoso que levantar da cadeira. Então a gente pensa duas vezes antes de levantar da rede, ainda mais quando é necessário, concomitantemente ao movimento de levantar que exige o corpo todo em ação síncrona (porque a bunda da gente tá afundada na rede) com o movimento de levantar o computador das pernas. Se é mais difícil levantar a dispersão é menor, porque a gente não pode se dar ao luxo de ir fazer xixi toda hora, de ir beber água ou fazer a pausa do café a todo instante. A gente tem que sentar para ficar, uma relação séria, a gente e as planilhas. Sim.


A rede na verdade, uma e meia da tarde era um troféu. Ficar frente a frente com as planilhas era um troféu. Troféu porque foi com muito custo que conseguiu o emprego novo e agora as planilhas estavam ali. No home office da quarentena. Tinha que mostrar serviço, mas existe o serviço básico que uma casa exige para continuar funcionando enquanto casa, enquanto lar. O metabolismo basal doméstico, digamos. Depois de passar boa parte da manhã ajudando meu filho mais velho com a tarefa doméstica, varrendo a casa e passando o esfregão, vamos ali fazer o almoço. A gente concentra, pensa, vai fazer o quê? Melhor lavar a louça antes. Lavamos. Olha o tempo, a esposa vem almoçar meio deia e quinze. Ela tem que entrar sentindo o cheiro da comida. Mas e as planilhas do emprego novo? Calma, vai dar certo. Vamos picar os legumes. Refogar o alho, fazer o almoço completo. Fez tudo? Ótimo. As crianças reclamaram que tinha cebola. A louça foi lavada. Não, não foi, quer dizer, foi, mas não tudo, só o mínimo necessário. Sabe aquele filme da bolha assassina? Um monstro alienígena que não para de crescer. Então. Era isso. Mas com louça. A louça assassina. Não esquenta, respira. Vive o momento presente e agradece a Xangô, Buda e até a Ganesha de quem a gente não é adepto, mas não custa nada, o fato de não ter roupa para estender. Não é à toa que uma parte da pauta política de muitas mulheres é o reconhecimento do trabalho doméstico não reconhecido e não remunerado. Claro que a gente sabe que tem muito mais coisa envolvida, mas se fosse só o trabalho doméstico, ainda assim já era motivo de sobra para a fogueira de sutiãs. A vontade que a gente tem é de queimar a cueca. Mas a gente fez ou tentou fazer tudo e está ali com o troféu da gente: as PLANILHAS DO EXCELL!


O primeiro enigma é porque 6 arquivos para a gente extrair todas as informações? Aparentemente é o tipo de coisa que a gente sempre pensa que é informatizado, mas não é. É que nem o trabalho daquela amiga da gente que consiste em separar os cheques sem fundo no banco. Você já parou para pensar como sabe que o cheque é sem fundo? O computador analisa os fundos e devolve? NÃO! São pessoas. “Vocês não acreditam em quem eu vi hoje! Sim, a fulaninha passou um cheque sem fundo hoje...” , pois é... E uma dessas pessoas que analisa os fundos dos cheques é essa amiga da gente. Mas foca então, concentra que as planilhas estão ali, e mais três relatórios que vão fazer você criar mais um relatório e mais uma planilha, mas essas, sim, serão definitivas como o retorno do cheque sem fundo ao emissor (ou emissora) para que os fundos sejam restituídos.


Calma, concentra. A questão toda é a conjuntura. Ah!, a conjuntura de um lugar que é mais home do que office.


E a consequência disso é que você nem consegue ser um bom pai, nem um bom dono de casa nem um bom mexedor de planilhas. Ao menos sem perder a sanidade mental. Porque isso tudo junto ao mesmo tempo agora cansa. E muito.


Mas você se concentra. Concentra muito. E finalmente as planilhas ocupam lugar de destaque no seu cérebro. E justamente quando linhas e colunas começam a fazer sentido a porta abre. Era a hora da pipoca. O que pode ser mais importante que uma pipoca? Como os filhos da gente tinham ficado sem pipoca um dia antes a gente fica com peso na consciência e vai fazer a pipoca. Respira. Olha como é zen isso de fazer pipoca, o caos, os milhos, a transformação. Zás! A iluminação. Pipocas brancas, salgadas e que logo se amarelam ao contato com a manteiga derretida. Voltamos ao escritório e entramos novamente na rede. As linhas, as colunas, os números dentro das linhas e colunas. Estamos entendendo tudo.


A porta se abre. Está na hora do nescau. O que pode ser mais importante que um nescau?




Gostou da crônica? Tem outra do mesmo autor sobre essa mesma quartentena aqui.

 
 
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A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

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