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Franz Liszt - Tudo sobre, mais um pouco e muito mais



Por Rafael Torres


 

Andei falando pouco sobre o compositor Romântico húngaro Franz Liszt por aqui. Ser compositor envolve muitas habilidades. Um bom compositor domina todas elas ou então é um prodígio sem igual em uma ou duas.


Eu costumava não ter paciência para com a sua música, por detectar nela muito virtuosismo gratuito. Muitas cascatas e tufões de notas sem propósito. Estava, acho, errado. À medida em que fui escutando, percebi que sua obra (essencialmente para Piano) era exatamente como eu pensava, tinha demonstrações de habilidade em excesso. Mas percebi, também, algo que não notara antes. Que não há nada de errado com isso, pelo menos na dosagem que ele usa.


Liszt toca para o imperador Franz Joseph I em um Piano Bösendorfer. Data e autor desconhecidos.
Liszt toca para o imperador Franz Joseph I em um Piano Bösendorfer. Data e autor desconhecidos.

A técnica pianística teve um salto evolutivo incrível em Paris nos anos 1830, onde viviam Liszt, Frédéric Chopin, e Sigismund Thalberg, cada um trazendo peças cada vez mais intrincadas. O objetivo era esse, o de tornar tocar piano uma coisa sempre mais complexa, com novos problemas, novas soluções, novas invenções e idiomatismo. Ouso dizer que, antes dessa geração, e se excetuarmos algumas das últimas sonatas para Piano de Ludwig van Beethoven (1770-1827) e de Franz Schubert (1797-1828), todas as peças escritas para teclado, especialmente as Barrocas, como as de Domenico Scarlatti, Girolamo Frescobaldi, François Couperin e Johann Sebastian Bach, podiam ser facilmente transpostas para outro instrumento ou combinação de instrumentos. Já ouvi discos inteiros de obras de Bach tocadas no Acordeon. Ou por Trios de Cordas, ou Quartetos.


É absolutamente impossível fazer isso com a obra de Liszt. Ou, pelo menos, com algumas obras. E isso, descobrir novos efeitos no instrumento, expandir suas possibilidades expressivas e explorar todos os seus recursos é, por si só, uma arte. E quando, além de toda a parafernália técnica, a música tem significado, beleza e expressão, como é o caso da maior parte da obra de Liszt, vejo que esta não é apenas válida. É essencial.


 

Franz Liszt (1811-1886)


Liszt Ferencz, nascido em 1811, foi batizado Franciscus, mas lhe chamavam de toda variação desse nome: François, Franz, Francesco etc. Ele veio ao mundo em um período de fertilidade musical na Europa central. Em 1809 nasceu Felix Mendelssohn, em 1810 nasceram Frédéric Chopin e Robert Schumann e, em 1813, Richard Wagner e Giuseppe Verdi.


Franz Liszt, compositor e pianista húngaro, 1839. Óleo sobre tela de Henri Lehmann.
Franz Liszt, compositor e pianista húngaro, 1839. Óleo sobre tela de Henri Lehmann.

Liszt nasceu na vila de Doborján, no Reino da Hungria, que era dominado pelo Império Austríaco (dos Habsburgo). Doborján hoje é a cidade de Raiding, na Áustria. Sua língua nativa era o alemão. Ele não sabe falar magiar até hoje.


Quando meu irmão estava na faculdade de Piano em São Paulo, percebeu que as pessoas pronunciavam "Licht", em vez de "List". Na verdade, isso é uma dúvida eterna. Há quem diga que seu bisavô, chamado Sebastian List, quando migrou da Alemanha para a Hungria, estranhou que todos o chamassem de Licht. Daí descobriu que adicionando o z os húngaros passavam a pronunciar List, como ele queria. Então, Liszt = List, certo? Ah, se fosse tão fácil... Porque há, também, quem defenda tese completamente oposta. Que o z foi adicionado justamente para que se pronunciasse Licht.


Saibam os paulistas e os cariocas que, no Ceará, biscoito é o doce e bolacha, o salgado.


Pois bem. Após um concerto juvenil (aos 9 anos) extremamente bem sucedido, ele e seu pai, que viera lhe ensinando até ali, angariaram dos aristocratas embasbacados dinheiro suficiente para custear sua educação musical por seis anos. Eles não pestanejaram e partiram para Viena. Ali, ele teve aulas de piano com Carl Czerny e de composição com Antonio Salieri.


Parêntesis para Beethoven


Conta-se (ele contava) que, aos 11 anos, já morando em Viena e estudando com Carl Czerny (o último e mais famoso aluno de Piano de Beethoven), pediu a este que arranjasse um encontro na casa de Beethoven - isso foi três anos antes da morte dele. E que, após muita insistência, o mestre consentiu. Liszt tocou para ele. O grande compositor ouviu (aliás, acho que não escutava mais nada) e perguntou se o garoto conseguiria tocar uma Fuga do Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach transpondo para o tom que ele escolhesse. Liszt o fez e arrancou uma fala ambígua do alemão: "Um diabinho, esse aqui!". Liszt não gostou.


Fecha Parêntesis


 

Este quadro, de Josef Danhauser, retrata uma reunião imaginária, com Liszt tocando para George Sand, Berlioz, Paganini, Rossini e outros, vigiados pelo busto de Beethoven.
Este quadro, de Josef Danhauser, retrata uma reunião imaginária, com Liszt tocando para George Sand, Berlioz, Paganini, Rossini e outros, vigiados pelo busto de Beethoven.

Em 1823, já tendo lucrado horrores com concertos, ele e a família se mudam para a França, mas Liszt não pôde entrar no famoso Conservatório de Paris por ser estrangeiro. Acabou estudando com Anton Reicha e Ferdinando Paer. De qualquer forma, a partir de março de 1824, sua carreira começou de vez. Ele fez uma turnê aplaudidíssima na França e na Inglaterra e, nos seguintes 4 anos, foi recebido com veneração em cada cidade por que passou.


 

O Revés


Em 1827 seu pai, Adam Liszt, morreu em Paris. A família continuou vivendo lá, mas Liszt, o Franz, não queria mais dar concertos. Sobrevivia de aulas que dava de uma ponta a outra da cidade. Apaixonou-se por uma moça, mas a família vetou o casamento. Começou a beber e fumar. Parou de dar aulas e recorreu à religião, quase transformando-a em um vício.


O que começou a tirá-lo dessa fossa foi a descoberta, através de um amigo violinista, da música de Franz Schubert, por quem a admiração de Liszt, Romântica até a raiz, passou a ser apaixonada, febril. Ele jamais abandonaria o hábito de transcrever para o Piano obras escritas para Voz e Piano (os chamados Lieder, plural de Lied) por Schubert, que falecera em 1828. Se a música já era para Piano, Liszt dava um jeito de trabalhar nela, transformando-a em um quase Concerto para Piano e Orquestra.


No final de 1830 ele conheceu o grande compositor Hector Berlioz e sua espetacular Sinfonia Fantástica, que muito o impressionou. Em 1832 ouviu o compositor e violinista Nicolò Paganini. Foi quase um golpe. O virtuosismo do homem que diziam ter feito pacto com o diabo era a coisa mais impressionante que Liszt já tinha visto. Ele tocava o impossível. E o impossível passou a ser a meta de Liszt. Ele se tornaria o Paganini do Piano.


Cada um desses músicos, Berlioz, Paganini, Beethoven, Schubert e Frédéric Chopin, que conheceu por essa altura, projetou em Liszt traços que formariam sua personalidade musical, porque ele absorvia e internalizava o que o interessava com muita facilidade.


 

A Lisztomania


Em 1839 ele volta aos palcos. Pelos seguintes oito anos foi criada a imagem de um artista com talento ilimitado, quase sobrenatural, além de (ele era considerado) belo, fazendo mocinhas despencarem no chão ao som de tantas notas por segundo quanto um ser humano era capaz de produzir. Era uma Beatlemania. "O primeiro pop star", gostam de dizer os que gostam de música pop e não conseguem perceber que a música de Liszt é a antítese desta.


Mas, se não podemos comparar, como vamos compreender? Bom, ocorre que o termo "mania", no século XIX, tinha uma conotação diferente da atual. Medicamente, não se compreendia por que as pessoas agiam assim (desmaiando, idolatrando, com taquicardia e suores) à simples menção de Liszt. Uma luva jogada por ele era uma relíquia de valor inestimável. Amontoavam donzelas no chão a disputar ferozmente pela peça.


A Lisztomania começou em Berlim, em 1841 e recebeu esse nome alguns anos depois, em 1844, por Heinrich Heine, em Paris. Críticos de música, diários de fãs e cartas trocadas nos dão pistas sobre a dimensão sem precedentes que a febre alcançou. Algo como o que veríamos no século seguinte, durante a Beatlemania (paralelo inevitável), mas, dessa vez, com precedentes.


Lisztomania nada mais era que o frenesi, a febre causada pelo compositor e pianista Franz Liszt. Uma histeria observada especialmente em mulheres. Começou, como dito, em Berlim, 1841, e foi descrita em Paris, 1844. Como diz a Espanholinha do YouTube (canal Música con Historia, canal utilíssimo): foi a primeira vez que a sociedade viu um grupo de pessoas entrar em total frenesi por ver uma pessoa em cena.


A Espanholinha do YouTube:


Os paralelos com a Beatlemania não terminam aí. Mas deveriam. Que, no máximo se comparasse a Beatlemania à Lisztomania, mas não é o que se faz. Levanta-se um breve interesse por esse tal de Licht quando o assunto vem à tona e pronto. A cultura popular o esquece, porque a cultura popular esquece.


De qualquer forma, não considero o assunto de tamanho interesse para deliberar mais.


 

A Música de Liszt

A música para Piano de Liszt parece surgir da tentativa do compositor de produzir a peça mais difícil antes de ser impossível. Ela traz novos problemas técnicos, ou aumenta a dificuldade de problemas técnicos já superados. Mas não só. Qualquer pateta pode escrever música difícil de tocar. É fácil. Mas você corre o risco de ultrapassar o domínio da dificuldade e entrar no domínio do impossível. Entre o muito difícil e o impossível há um limiar. É nesse limiar que Liszt trabalha. E necessário ter muita intimidade com o Piano, horas e horas de estudo e vasto conhecimento do repertório existente para encravar na sua personalidade esse modo de compor. Além disso ele compôs obras orquestrais e até corais.


E o mais importante: sua música não era vazia. Certamente, música nenhuma precisa de tantos artifícios quanto ele usa para ser expressiva. Mas o que ocorre de maneira muito usual é que os compositores, ao trabalhar suas ideias e colocar no papel mil escalas em prestíssimo e em semifusas, escalas cromáticas em terças, o chamado "efeito das três mãos" e oitavas em rápida sucessão, perdem facilmente a essência da música. Não Liszt. Ele sabia utilizar todos esses recursos a favor da expressividade e, muitas vezes, do enredo, já que grande parte de sua obra é programática.


A obra abaixo é considerada, não só a mais difícil de Liszt, mas uma das mais exigentes de todo o repertório. Confira a russa Valentina Lisitsa a desbravando. Chama-se "O Contrabandista".



 

O Fim


Liszt parou de se apresentar em público em 1847, atendendo um conselho de sua amada, a princesa Carolyne zu Sayn-Wittgenstein. Tinha 36 anos.


Em 1860 foi morar com a princesa (que, casada, não conseguira o divórcio) na Itália, e permaneceram unidos até a morte, que veio com alguns meses de diferença entre os dois. Franz Liszt morreu em julho de 1886, em Bayreuth, na Baviera, onde sua filha Cosima, viúva do compositor Richard Wagner, tentava organizar um novo Festival de Bayreuth. Naquela cidade, Wagner havia dirigido, em 1876, o mesmo festival.


O Festival de Bayreuth permanece hoje como um dos mais importantes festivais de Ópera do mundo.

 

A obra


A vasta obra do compositor pode ser dividida em vários pares: Transcrições e Originais; para Piano e para Orquestra; Música Programática e Música Pura etc. Exemplos de todas elas você pode encontrar na PlayLiszt abaixo.



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