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Ao Próximo Acorde (Ross Mitter)

  • Foto do escritor: Rafael Torres
    Rafael Torres
  • há 3 dias
  • 8 min de leitura
Por Rafael Torres

FIque com mais um dos meus "Contos Medonhos e Desarranjados, Opus 1 - A Ilha Vermelha". E não se preocupe, não vou esgotá-los aqui. São mais de 50 contos.


O próximo será um conto do Opus 2 - Reformas. Serão, no total, 3 Opp.


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- Prazer, Ross Mitter – e ele estendia, curtinho, 3 dedos pra pessoa apertar.

Isso lhe rendera o apelido de Ti Rex Mitter. Circulava pelos salões de festa e mansões mais chiques da Praia do Futuro e das Dunas, em Fortaleza, nos anos 2000. Suas credenciais e seu cartão de visita eram fotos que mostrava no celular ao lado de Caio Blat, Lula ou Luana Piovani.

- A Lu? Amicíssima. Mas só fala besteira, a mulinha... – ria agudo e alto, jogando-a para fora da tela com seus dedinhos.

Os convidados se divertiam com seu jeito ao mesmo tempo canastrão e boa pinta. Suas falas arrancavam gargalhadas de choque e deleite.

- Eu sou mais gay que o Clodovil e mais macho que a Dani Mercury.

Ou:

- Ator, pra mim, tem que viver pelado. Roupa é acessório genérico!

Um dia, os irmãos Rafael e Tobias conseguiram arrastar Gabriel para uma dessas festas. Era uma reunião discreta na casa de um empresário parente deles. Os três haviam estado tão mal que precisavam aproveitar uma fugaz melhora sincronizada para tentar socializar. Os três amigos tinham uma ligação que flertava com o místico. Costumavam referir a si como um tripé sem nada em cima.

Na festa, foram apresentados ao Ross Mitter, que, pode-se dizer, gostou deles de cara. A uma certa altura, na mesa dos homens – a festa tinha disso – chegava a hora do violão passar de mão em mão. O primeiro foi Jorge Vercillo, que tocou sua música mais famosa. Foi aclamado.

Eventualmente, o violão chegou a Gabriel, que tocou a sua Interiores, explicando, antes, que se tratava de uma homenagem às casinhas, ruazinhas e pracinhas de antigamente. Quando terminou, os aplausos foram intensos, muito mais do que ele imaginaria. Teve que repetir a música outras duas vezes.

Tobias encantou a todos com sua voz andrógina cantando Ney Matogrosso. Rafael mostrou uma obra sua para violão solo que era de uma delicadeza de chorar.

Até que chegou a vez de Mitter. Ele agarrou o violão e disse que ia fazer uma homenagem a Joãozinho Gilberto. Era amicíssimo do irmão do cantor. Tocaria Undiú, de autoria do próprio João.

Assim que ia começar, seu telefone tocou.

- Os amigos vão me dar licença. É Jeff. Jeff Goldblum. Ele está passando por um momento difícil.

E ficou falando inglês bem alto, como se para provar que era Goldblum, mesmo, no outro lado da linha. Os outros esperaram, comendo tira-gostos.

O irmão do empresário dono da casa, contava histórias do cárcere, de quando tinha sido sequestrado.

- Eu perguntei ao carcereiro: macho, tu preferia ser corno ou estar aqui no meu lugar? E ele: ser corno, ser corno. Bandifeladaputa! - Alguns riam, outros tentavam ficar sérios.

Ross Mitter desligou o celular e fechou os olhos dramaticamente, como se não percebesse que estava sendo observado, a orar pelo seu amigo hollywoodiano. Voltou para a mesa.

- Qualquer dia eu venho aqui com o Jeff. Vocês vão se apaixonar.

- Toque pra gente, amigo – disse algum ricaço. Gabriel, Tobias e Rafael se divertiam com esse personagem.

Ele se sentou, afinou o violão mais uma vez, pediu desculpa pela voz, tinha passado o dia ensaiando com Lázaro Ramos e Lalá gritava muito... E tocou Undiú.

A música era conhecida por Gabriel, ele a adorava. A voz de Mitter era surpreendentemente melodiosa, ainda que rouca. Os empresários olhavam, interessados.

O problema é que não acabava. Chegava ao fim, ele repetia. Já devia estar na terceira repetição, Gabriel olhou para os lados e todos estavam concentrados na música. Ross Mitter tocava de olhos fechados. Seus amigos Rafael e Tobias pareciam ser os únicos ali a achar aquilo estranho junto com ele. Será que aquele povo já tinha ido para vários shows do João e era assim, mesmo?

Uma coisa esquisita era que sempre, na mesma parte, o dono da casa fazia um gesto de aprovação, piscando o olho e cutucando o amigo ao lado.

Na quarta repetição Mitter fez algum progresso, cantando uma parte nova da canção. Todos ainda prestavam atenção quando se ouviram tiros na porta. Todo mundo se assustou. De repente, três homens invadiram a sala. Tinham atirado nos seguranças e apontavam armas e gritavam com os presentes. Rapidamente, houve uma discussão e deram um tiro no dono da casa.

Todos foram para baixo da mesa. Menos Ross Mitter, que continuava a tocar e permanecia ignorado pelos bandidos.

- Todo mundo – todo mundo – todo mundo – todo mundo – o assaltante queria falar, mas tinha travado. Ele ficava falando esse começo de frase sem parar. Até o gesto que fazia, se repetia. Os outros dois ladrões também pareciam travados.

Gabriel olhou para Mitter e percebeu que este tocava repetidamente o mesmo acode. Quando passou para o próximo acorde, o bandido conseguiu destravar, mas só um pouco, porque Mitter ficou repetindo aquele novo acorde, fazendo o ladrão travar novamente. As joias e celu – As joias e celu – As joias e celu – Mitter piscou para Gabriel. E então, bruscamente, recomeçou a música. E tudo voltou ao normal, como se nada tivesse ocorrido.

- Que é que vocês estão fazendo debaixo da mesa? – perguntou o dono da casa.

- Nada, procurando meu celular – disse Gabriel.

- Senta, senta

Agora, Mitter tocava o começo da música e parecia que nada daquilo tinha acontecido. O dono da casa cutucava o amigo e piscava o olho em admiração. Parecia bem.

Quando chegou na mesma parte, ouviram os tiros e a cena se repetiu com exatidão. Dessa vez, os meninos tiveram certeza de que Mitter é quem estava fazendo com que os homens não conseguissem dar sequência ao crime. Parecia que ele controlava o próprio tempo no ritmo da sua bossa nova.

Mais uma vez, ele recomeçou a música e tudo voltou ao normal. E, mais uma vez, Gabriel, Rafael e Tobias se viram debaixo da mesa, os ricaços olhando para eles. Levantaram-se, dando a mesma desculpa de antes. Não sabiam o que pensar. Se Ross Mitter parasse de tocar aquela música, nada impediria os assaltantes. Mas notaram que, dessa vez, antes que a música chegasse ao ponto em que os assaltantes agiam, Mitter segurou um acorde e piscou para eles. Ficou tocando esse acorde repetidamente.

- Essa hora é logo antes da gente escutar os tiros. Agora, eles devem estar perto de sacar a arma – Tobias raciocinou.

- Então, vamos lá – agiu Gabriel.

- Ai, meu DeuxRafael era o mais nervoso.

Foram até o portão e viram uma fileira com os três bandidos, dando um passo e voltando em loop, como um disco de vinil arranhado, tocando o mesmo trecho, indefinidamente. O primeiro estava levando a mão à cintura, mas ela sempre voltava. Tudo que eles tinham que fazer era tirar as armas. Conseguiram fazê-lo com certa dificuldade, em cada um delesEntraram na casa e jogaram as armas no lixo. Sentaram-se. Avisaram a Mitter que ele podia continuar. E o resto da noite foi um sucesso.

Ao final foram falar com o herói.

- Mitter, eu não sei como você fez isso, mas estamos vivos graças a você. E eles nem sabem disso Gabriel foi sincero.

- É só um truque que aprendi.

- Como funciona?

- Como você viu. Tem que tocar essa canção do João, exatamente com os acordes do João e cantar do jeito que ele canta. Aí o loop da música cria um loop temporal. Mas tem que treinar muito...

- Que fantástico! Quem mais sabe disso? – Tobias só acreditava porque tinha vivenciado.

- Só eu, dois amigos e a Martinha. E agora, vocês.

- Que Martinha? – perguntou Rafael.

- Argerich!

Os meninos ficaram impressionados.

- E ela toca João Gilberto? – Tobias estava curioso.

- Ela toca o que ela quer, ? Não, mas pra esse truque, no caso dela, tem que ser Villa-Lobos. "A Lenda do Caboclo".

Impressionante. Se alguém fosse saber esse segredo, era realmente Martha Argerich. Tocando, precisamente, Villa-Lobos.

- Ross Mitter, você salvou nossas vidas e nunca vamos esquecer. Mas como você sabia que isso ia acontecer?

- Não, não sabia. Eu sempre toco Undiú e faço o loop pra ver se alguém repara... Até hoje, só vocês, Martinha e essas duas outras pessoas notaram. Isto é, não ficaram presos no loop. São pessoas, digamos, especiais – e piscou novamente para os três.

Rafael e Tobias se entreolharam, discretamente. Achavam que deveriam saber quem era uma delas, mas tudo em que pensavam era um diretor da escola, anos antes, numa memória que parecia um sonho.

Alguns meses depois, os três amigos foram para outra festa. Um dos ricaços comentou:

- Rapaz, aquela última vez foi louca. Jeff Goldblum, Ross Mitter e 3 revólveres na lixeira.

Mitter não foi naquele dia e nunca mais.

Foi por isso que, algum tempo depois, quando Gabriel estava no centro da cidade e viu Mitter descalço, maltrapilho e deitado num colchão furado, convidou-o para ir à sua casa. Chegando lá, pediu que tomasse um banho, lavou seu cabelo três vezes e depois o levou ao salão do Leandro.

Sempre que Leandro cortava o cabelo do Gabriel, via a imagem de um buraco negro. Nunca conseguiu, nem em conversa, cravar qual era o medo dele. Ross Mitter sentou e Leandro viu um violão quebrado em seu lugar.

- Você tem um violãozinho para ele? – disse, de cara.

Fizeram barba e cabelo e ele saiu de lá outra pessoaGabriel o alimentou e lhe deu uma mala cheia de roupas e alimentos, torcendo para ele não ser assaltado. Deu-lhe também um violão. Um Giannini de quando era criança. Até pediu que ficasse, mas ele dizia que sua casa agora era a rua. Então, que ficasse na rua de Gabriel? Sim? Sim, ele prometeu. Ficaria sempre perto da praça.

Nunca mais se viram.

Alguns meses depois, Gabriel viu no Twitter o obituário de um certo Rosmício Leal, postado pelo pessoal de teatro da cidade. Lá embaixo, um comentário de ninguém menos que Jeff Goldblum:


Descanse em paz, meu estranho e mágico amigo! Ao próximo acorde!”

 

Continua...


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A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

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