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Foto do escritorNílbio Thé

A ignorância como ideologia

Atualizado: 29 de abr. de 2021


Templário viajante do tempo afirma que STF é comunista porque ele tem certeza. Foto pinçada do tweet de @MatheusPatric90

Paulo Kogos sendo científico.

Nos tempos atuais, não deve ser difícil que você, que lê agora este texto, tenha vivido ou conheça alguém que viveu algo bem parecido com a seguinte situação: uma pessoa adulta explicando aos pais a importância da vacinação no atual estado de pandemia. O pai não vai se vacinar até ver o que vai acontecer de efeito colateral em quem se vacinou antes dele e a mãe não entende como a vacina vai conseguir cobrir as variantes do vírus. A pessoa adulta em questão tenta explicar à mãe como a vacina vai funcionar na tentativa de que ela, depois, explique ao pai. Então, começa falando da vacina oriunda do RNA do vírus e, de repente, se engasga. A pessoa olha atônita para a mãe e fala: "espera... você é farmacêutica. Tem pós-graudação. Era você que tinha que estar explicando isso. Eu que deveria ter dúvidas, não você. Não vou explicar mais nada a vocês, não. Os artigos de epidemiologia e imunologia estão sendo divulgados pelos jornalistas." A mãe farmacêutica e o pai tentaram continuar a conversa lançando ideias que qualquer pessoa que estudou minimamente a biologia e a química do ensino médio poderia refutar.


De imediato minha mente relacionou este fato ao romance de ficção científica Flores para Algeron, de 1966, escrito pelo estadunidense Daniel Keyes (caprichosamente editado pela Aleph aqui no Brasil com excelente tradução de Luísa Gleiser). Fazia tempo que queria ler e finalmente rolou. É um livro extremamente triste. Para mim, quase tão triste quanto Vidas Secas do querido Graciliano Ramos. E a despeito do que muitas pessoas pensam sobre ficção científica, trata-se de um livro extremamente humano. Esse livro me pareceu uma ótima ferramenta para começar a entender o mundo e essa história toda que está acontecendo hoje em dia com negacionistas e o "movimento antivax" por toda parte. E, claro, é a partir dele que vou começar a escrever este singelo artigo.

Edição de 2018 da Editora Aleph

No romance de Keyes, conhecemos a história de Charlie Gordon, um homem adulto que sofre de um severo retardo mental (embora em algumas passagens sejam citadas pessoas com quadro intelectual ainda mais deficitário que o dele). Ele se submete a um experimento arriscado e inovador que, em poucos meses, triplica seu parco quociente de inteligência.


O romance epistolar organizado através de "relatórios de progresso" que Charlie deve escrever para apresentar em suas sessões de terapia narra a dificuldade de ser, de repente, inundado por uma série de conhecimentos e percepções que ele, antes, não se dava conta. A epígrafe do livro, aliás, é perfeita, um trecho da República de Platão em analogia à perturbação que nossa visão sofre ao sair da profunda claridade para a mais densa escuridão ou vice-versa. Segundo Platão (isso também está na epígrafe), perturbação semelhante ocorre com a alma humana ao sair da profunda ignorância para o conhecimento. E é isso que acontece ao protagonista. Essa nova inteligência de Charlie faz com que ele perceba que as pessoas ao seu redor não são tão amigáveis assim. Passa a refletir sobre tudo que o cerca, mas essa reflexão não fica circunscrita ao seu presente (e possível futuro), mas principalmente ao seu passado. Assim, lembranças que antes eram apagadas, acendem com força e com novas interpretações, evidenciadas através de sua nova inteligência em detalhes que ele antes não percebia.


Por falar em lembrança, quero contar o que se passa em uma obscura disciplina do curso de Ciências Sociais em que uma professora proferiu a seguinte frase: "Sua ideologia determina o rumo de sua ciência". Eu até hoje não sei se essa frase é dela ou de alguém bastante famoso. O certo é que esta frase me marcou profundamente por ser bastante elucidativa de muita coisa. Se não fosse por ela, esta professora seria menos que um borrão em meus arquivos mentais de hoje.


Antes de continuar a reflexão, é salutar definir, ainda que de forma bem rude, a ciência como um conjunto de métodos, um sistema de regras para se chegar a conclusões. Uma receita mais ou menos precisa para se construir respostas possíveis para as perguntas que nos afligem. Outra definição, igualmente rude, é a que gostaria de oferecer para ideologia como tudo aquilo que acreditamos como certo, aquilo que desejamos que seja a verdade para todos e que apaga as dúvidas que porventura existam. Ou seja: a ciência acaba sendo um sistema de obtenção de respostas e a ideologia um conjunto de desejo por respostas.


Embora essas "definições" sejam grosseiras, elas são exemplificadas plenamente em duas histórias. Uma delas é bem pessoal e que nunca saiu da minha cabeça que foi um colega seminarista de escola na época do ensino médio me explicando que todo padre tem que cursar obrigatoriamente duas faculdades: a de Filosofia, para se encher de dúvidas e a de Teologia para se encher de respostas. A outra história é um bem mais pública e se trata do célebre experimento de Samuel George Morton, na década de 1840, comprovando cientificamente que humanos caucasianos eram intelectualmente superiores a qualquer outro ser humano de outra etnia. Digo que "comprovou", porque, de fato, seu método foi irrefutável, já que Gordon utilizou os recursos científicos mais avançados que a época oferencia: bolas de chumbo e crânios humanos. Morton despejou bolinhas de chumbo nos crânios (mais de mil, diga-se) e "eureca": os crânios que cabiam mais bolinhas eram, justamente, dos europeus. As etapas foram mais ou menos essas: se os crânios comportavam mais bolinhas, eram maiores, então comportavam um cérebro grande. Se o cérebro era grande, então era mais inteligente, ratificando tudo o que se conhecia (bem pouco) sobre o cérebro naquele tempo.


Dois motivos o fizeram chegar a esta conclusão: o já mencionado rigor científico e experimental e, ainda mais importante que sua ciência, a vontade de acreditar que, de fato, os brancos tinham que mandar no mundo. Em outras palavras: a necessidade de comprovar, cientificamente, sua crença, sua ideologia racista. Uma ideologia, aliás, comum a quase todo cientista ocidental do século XIX.


Pouco depois disso, em 1895, Gustave le Bon percebeu, também cientificamente (claro!), que os cérebros dos homens geralmente são maiores que os das mulheres, o que levou à conclusão de que também os homens são mais inteligentes que as mulheres. Hoje em dia, sabemos que indivíduos sexualmente masculinos têm, inclusive, mais neurônios que as mulheres, mas também sabemos que homens não são mais inteligentes que mulheres e dificilmente algum cientista vai tentar provar isso hoje me dia. Aliás, existem algumas teorias curiosas sobre essa quantidade extra de neurônios, mas que não vem ao caso agora, já que o tema desse texto é outro: a vontade de acreditar em algo sem comprovação ou, ainda, a necessidade de desacreditar fatos em prol de uma crença, de uma fé ideológica inabalável. E muitas vezes isso acontece de modo estrutural, dentro de um sistema político, basta lembrar que Galileu Galilei foi obrigado pela inquisição católica a negar suas próprias descobertas astronômicas para não ser queimado numa fogueira (ou qualquer que fosse a pena capital na época).


Citei esses exemplos antigos para entendermos uma coisa: à medida que vamos aprendendo coisas, vamos deixando de lado certas crenças. Ao menos deveríamos fazer isso. Vejamos: atualmente, sabemos bem mais sobre o funcionamento cerebral e sobre a inteligência do que antes. E também (apesar dos esforços contrários de muitas pessoas) evoluímos social e culturalmente a ponto de deixarmos muitas crenças sexistas e eurocêntricas absolutamente incongruentes de lado. Importante mencionar que a ciência, como parte da cultura, também contribuiu para esse progresso. Uma das provas disso é que, com o passar dos anos, mais e mais furos epistemológicos foram sendo descobertos e divulgados no experimento com bolinhas de chumbo e crânios de Morton. Isso porque é assim que a ciência funciona... Vamos fazendo descobertas e deixando antigos paradigmas de lado (isso não sou eu quem diz, mas o físico Thomas Kuhn em seu soberbo livro A Estrutura das Revoluções Científicas, uma das obras mais importantes do século XX). No entanto, nada nos impede que outras crenças e ideologias cegas não embacem nosso discernimento. Voltamos aqui a falar das vacinas "ideologizadas" pelo Governo Federal que, de tanto martelar dúvidas através dos meios de comunicação, faz com que pessoas estudadas passem a duvidar de seu próprio conhecimento.


A crença é baseada em fé, a certeza de algo que, para o crente, não necessita de provas, mas a ciência, o conhecimento, não. Aliás a ciência é justamente o contrário e necessita de provas. Eis aqui um pequeno trecho do livro Um Céu de Estrelas, de Fernando Bonassi, que sintetiza isso bem:


"Na verdade, o homem nunca tinha conseguido perceber o fio de gilete que demarcava o lugar onde a mente deixava de ser clara, resoluto e firme, para entrar na zona da crença; na zona gelatinosa da crença. "


Ou seja, tem horas que a crença atropela o conhecimento e vice-versa. Ou, numa maneira mais sutil, poderia dizer que, eventualmente, o conhecimento de algo entra em conflito com uma crença. Para citar um exemplo histórico, o famosos naturalista Charles Darwin demorou muito a publicar seu célebre livro A Origem das Espécies por causa de seu profundo respeito ao criacionismo cristão, depois que sua própria fé foi abalada. Ao perceber que outras pessoas receberiam os louros por suas próprias e pioneiras descobertas, apressou-se na publicação.


Agora, vamos do vinho para a água. Saimos de uma citação sobre uma das mentes mais brilhantes da humanidade para citar um exemplo, infelizmente atualíssimo: um determinado vereador cearense, ferrenho apoiador do presidente Jair Bolsonaro, que questionou veementemente, assim como seu ídolo faz constantemente, a eficácia da vacina - como podemos ver na imagem a seguir:

Carmelo Neto sendo antivacina.

Mas não basta ser antivacina. Tem que ser antivacina por conveniência, porque, ao que parece, vacina também tem ideologia. Então, dois meses depois da crítica, o governo federal já havia se rendido aos encantos da vacina enviando milhares de doses para o estado do Ceará. Fosse qualquer outro presidente, pela lógica (se é que o tal vereador a possui), ele continuaria sendo antivacina, mas como foi seu ídolo Bolsonaro que aprovou, o vereador, ao que parece, mudou de opinão. E não só isso: foi pessoalmente receber as vacinas (como podemos ver no print do tweet ao lado). Percebam que, se o carregamento de vacina fosse uma pessoa, provavelmente ele teria dado um abraço nela, a despeito do distanciamento social.

Carmelo Neto sendo virologista desde criancinha.

O importante aqui não é nenhum dado científico, mas a crença, a fé, a ideologia que ele tem ao afirmar que Jair Bolsonaro é, literalmente, o salvador da Pátria. Essa certeza nonsense baseada em fé, amor e devoção faz com que, dentre outras idiossincrasias, ele e diversos militantes bolsonaristas frequentemente repitam a frase de que tem certeza de que está "do lado certo" e, eventualmente de forma mais específica, "do lado certo da história". Como no exemplo a seguir:


Carmelo citando Além do Bem e do Mal de Nietzsche

Muitas pessoas tem essa ideia ao expor seus conceitos (quase sempre cheios de certezas absolutas) de certo e errado além de uma noção muito específica sobre o conceito de história. Tal equívoco talvez tenha sido oficializado com a publicação de um livro da categoria "best seller do New York Times" chamado O Lado Certo da História: como a razão e o propósito moral tornaram o Ocidente grande de um debatedor showman (obivamente estadunidense, onde impera a cultura do "show" mesmo em círculos intelectuais e acadêmicos) chamado Ben Shapiro. Esse livro já no título, revela uma quantidade de simpificações absurdas que atropelam reflexões incríveis, inclusive de um pensador da envergadura de Edward Wadie Said. Mas como o Said não é ocidental, então parece que o título cumpre seu "propósito moral". Agora quanto à parte do "lado certo da história", os problemas persistem. Segundo Izabel Melo, historiadora e professora da Uneb, mestra em História Social do Brasil e Doutora em Meios e Processos Audiovisuais, o termo não tem o menor sentido historiográfico: "História não tem lado, não é um trem nem tem lata de lixo, porque ela não é um Deus Ex Machina que julga tudo e organiza. Quem faz isso é Deus, para quem acredita nessa modalidade de juízo. História é processo, disputa, estabelecimento de narrativa, tudo isso feito a partir das teorias e metodologias", encerra Izabel. Percebemos, a partir daí, que o que as pessoas que estão "ideologizando a vacina"querem com essa frase sobre o "lado certo" é justamente estabelecer uma narrativa a partir da militância. Mas ele passa ao largo das teorias e metodologias tentando estabelecer uma narrativa apenas a partir da crença em Bolsonaro salvador que faz com que o conhecimento dele sobre vacinas seja posto totalmente de lado, quando não enfiado em alguma lixeira mental. O exemplo provavelmente não é bom, porque o vereador sequer terminou algum tipo de faculdade e também é muito jovem, então dificilmente ele vai ter muito conhecimento para jogar fora sobre qualquer assunto. No entanto, exemplos de pessoas verdadeiramente estudadas (inclusive médicos e enfermeiras) - e ao mesmo tempo negacionistas - não faltam. Esse assunto está, inclusive, programado para voltar à pauta aqui na Arara Neon de modo mais detalhado numa série de reportagens investigativas. Mas podemos adiantar alguns exemplos do caos científico que estamos vivendo em alguns exemplos abaixo.


Esquecido do funcionamento da vacina

O print é de uma postagem de uma conta chamada "@canaldofalcao1" no Instagram. O tal Marcos Falcão, médico recém-formado e militante bolsonarista, aparentemente não sabe a diferença entre vacina e imunidade mágica contra mau-olhado, porque uma postagem dessas dá muita margem para entender que ele pagou alguém para fazer as provas de imunologia na faculdade. Além disso, existe uma pequena anedota sobre profissional recém-formado... Certa vez, estava conversando com um amigo de longa data, engenheiro civil e colega da minha primeira especialização. Ele já tinha anos de profissão e comentou comigo: se o engenheiro for fazer um prédio só com o que ele aprendeu na faculdade, nem se preocupe, o prédio cai. Então, acho nitidamente preocupante um "doutor" desse ser referencial científico para alguém porque ele é tudo, menos cientista. E aí que está a grande questão: nenhum cientista que se preze, tampouco nenhum laboratório de indústria farmacêutica séria (sobretudo dentro da lógica do capitalismo) diz que uma vacina garante 100% de imunidade. O estratagema retórico aqui é se utilizar do argumento "sou médico" como uma possibilidade de dizer qualquer coisa com um sagrado e irrefutável respaldo científico.


A legenda da postagem apenas com a palavra "ciência" é uma tentativa de ser minimalista, misteriosa e irônica, mas a rigor nada diz. Todo texto tem um contexto e a gente não estuda hermenêutica, linguística e semiótica à toa (eu pelo menos não). Dito isso, basta entender as linhas que dizem claramente se tratar de uma conta bolsonarista para entender a entrelinha da campanha antivacina presente na postagem. Ou então basta ler os comentários da postagem.


No entanto, qualquer pessoa que estudou biologia corretamente no ensino médio sabe que vacinas não são mágicas. Uma vacina não é aquele escudo do Eric de A Caverna do Dragão, que protege todo mundo num campo de força. Essas informações básicas sobre vacina e imunidade em meio a uma pandemia também são repetidas por André Pinheiro, doutorando em biofísica pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ: "Vacinas tem a função de produzir anticorpos contra o agente infeccioso. Não necessariamente esses anticorpos serão capazes de controlar a infecção sem que haja qualquer manifestação da doença. É um método eficiente de aumentar a resposta imune de indivíduos evitando o desenvolvimento de formas graves das doenças e, em muitos casos, até mesmo evitando que a infecção seja sequer percebida. A cobertura total de vacinação não vai evitar que algumas pessoas desenvolvam a doença, mas evitará que esses infectados precisem de intubação e vaga na UTI." No entanto, o que é um dado científico frente a uma fé cega? Nada. Por isso que o mesmo médico também postou essa pérola da automedicação conspiratória:


Apoiando a automedicação

Fosse um pajé ou pai de santo recomendando um banho de ervas, certamente seria apedrejado em praça pública. Mas o amigão ao lado é médico e amigo, pode confiar. Na boa... Se você tem um amigo ou médico que dá um conselho desses, minha dica é: fuja! Dificilmente ele é um bom amigo ou um bom médico.


Existe uma ignorância ainda mais bizarra que esta: aquela orgulhosa de si mesma. É o caso de Paulo Kogos, influenciador digital de pessoas nitidamente influenciáveis e que em breve também retornará em uma matéria um pouco mais exclusiva sobre ele. Por enquanto, apenas mais uma foto como aperitivo que seria bom mostrar às gerações futuras:

Paulo Kogos sendo racional.

Se Marcos Falcão tem a desculpa de que é médico, Kogos não tem desculpa alguma. Talvez ele queira ser um charmoso outsider, ou talvez tenha sofrido demais com bullying na escola pelo fato de achar que é um cavaleiro templário que viaja pelo tempo (como podemos conferir na foto de capa desse texto)... O fato é que percebemos que a diferença entre coragem e falta de noção aqui é tênue. Um caso clínico de uma verdadeira ostentação de ignorância. O que me lembra de um trecho do livro Solaris, de Stanislaw Lem, também editado pela Aleph. O livro conta a história de um planeta cujo oceano é uma misteriosa forma de vida inteligente indecifrável para os seres humanos. Dois trechos são interessantes citar. Em um deles um filósofo fala que o contato com formas alienígenas só será possível se tais alienígenas forem humanóides, o que nos faz pensar em como tudo aquilo que é diferente de nós nos assuta e nos repele. Em outro trecho, alguns exploradores sugerem bombardear o planeta com bombas atômicas e ratifica a necessidade de destruirmos aquilo que não podemos compreender - rotina para os praticantes de religiões como a Umbanda e o Candomblé, que sofrem constantemente ataques de determinados grupos radicais neopetencostais ao invadirem e destruírem seus territórios sagrados. A destruição de algo que não compreendemos (ou nos recusamos), todavia nem sempre é física. Pode apenas ser sua veemente negação (não consigo entender astronomia, então a Terra é plana. Não consigo entender biologia, então Charles Darwin está errado. Acredito que a esquerda é má, então nazismo é de esquerda). Em resumo, um boato não vira fato só porque você tem fé nele, tampouco uma informação verdadeira vira falsa só porque você quer com muita força isso. Se não, vejamos:

Pegue a receita com sua nutricionista de confiança

Não é porque a Nestlé em 1957 disse que Leite Moça com refrigerante é uma merenda nutritiva que isso vai fazer bem para sua criança. Percebe?


Volto agora para o exemplo do começo do texto quando uma farmacêutica doutora pergunta ao filho sobre como funciona uma vacina. A crença está fazendo as pessoas esquecerem e renegarem aquilo que conhecem. Talvez, enxergar o mundo com clareza seja ofuscante demais e o mais cômodo seria voltar à caverna. Isso me lembra um terceiro livro, bem menos genial, mas divertido, chamado Como me tornei estúpido, do francês Martin Page, publicado no Brasil em 2005 pela Rocco.

Editora Rocco, 2005

Essa noveleta bem humorada conta a história de Antoine, um sujeito aparentemente formado em biologia, especialista em aramaico e profundo conhecedor da obra cinematográfica de Frank Capra e Sam Pekinpah, mas que não consegue se encaixar na sociedade. Provavelmente, por ninguém entender seus "gostos exóticos" (gostos intelectuais, é bom frisar). Sua inadequação é tamanha que sequer tem um emprego decente (Charlie Gordon, de Flores para Algeron, trabalha feliz numa padaria e seus problemas começam depois que a inteligência chega). Ele ouve de uma pessoa numa agência de empregos, ao ler assutada seu currículo, que ele estudou para ser desempregado. Sua solução é virar um imbecil para ser aceito e, também, mitigar suas angústias.


Antoine, conscientemente, torna-se um imbecil mais ou menos da mesma forma que Charlie Gordon conscientemente vira um gênio. Antoine seria um Charlie Gordon às avessas e deixo aqui a pergunta: estaríamos lutando contra um exército de Antoines? A motivação de Antoine é simplesmente buscar sua própria felicidade. Pessoas como Carmelo Neto, Paulo Kogos o tal médico recém formado Marcelo Falcão e todos os demais negacionistas certamente também buscam sua própria felicidade (o filósofo André Comte Sponville tem um livro ótimo sobre isso chamado A felicidade, desesperadamente), mas ao contrário de Antoine, que abre mão de seu conhecimento de forma racional e consciente, temos um exército de pessoas que abraçam certezas cegas, certezas cheias de ignorância. Pessoas que moravam fora da caverna e voltam correndo para ela porque a ignorância, no fundo, é reconfortante, já que mais ou menos, como diria Platão, um imbecil que vive numa caverna sob luz direta do sol, aparentemente, torna-se um monstro.


Gostou do conteúdo? Muito mais sobre política aqui.


Nílbio Thé


Editor da Arara Neon. E puto com esses antivacina.

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