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  • Foto do escritorNílbio Thé

É possível a poesia após o colapso?

Atualizado: 29 de set. de 2020


Theodor Adorno, filósofo, sociólogo e esteta judeu, em 1949, nos afronta com a pergunta: “É possível a poesia após Auschwitz?”. Para ele, escrever poesia após o horror do mais famoso campo de concentração nazista da II Guerra Mundial era um ato bárbaro. O Nazismo promoveu, como todos nós sabemos, um dos maiores genocídios (senão o maior) de nossa história, matando principalmente judeus, mas nem de longe limitando-se a eles. Ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e quem mais desse um mínimo de "motivo" era enviado aos diversos campos de concentração do país. Famílias foram destroçadas, dignidades massacradas... Crianças sofreram o que sequer deveriam sonhar. Poucos foram os que saíram de lá com vida.


Auschwitz está ali como um trauma na nossa memória coletiva. Não pode ser apagado. Isso porque falo do trauma mais famoso, mas na própria II Guerra sobram exemplos. O holocausto sino-coreano promovido pelos japoneses, pouco citado entre nós, é igualmente pavoroso, bastando mencionar seu pior massacre, “O Estupro de Nanquim”, em que todas as mulheres e meninas da cidade de Nanquim sofreram torturas sexuais enquanto os homens eram decapitados.


Como ser arrebatado em uma poesia sabendo que o poeta é um demônio em potencial? Como baixar a guarda para obras de arte adentrarem em nosso espírito nos tornando vulneráveis? Richard Wagner, por ser o fundo musical preferido dos campos de concentração alemães, até hoje muito dificilmente é executado por orquestras em Israel. O trauma pelo rompimento de laços éticos suplanta os valores estéticos e transformadores de uma obra.


Mas, ainda assim, quantos poetas viveram e morreram após Auschwitz e quantos ainda não estão por vir? Ana Mae Barbosa, principal arteducadora de nosso país, diz que, se a arte não fosse importante, ela simplesmente não existiria desde os tempos das cavernas, sobrevivendo a toda e qualquer forma de menosprezo. A arte sempre existirá, a despeito da clareza acerca de sua função. Mas a pergunta é: que tipo de arte necessitamos hoje? Arte é linguagem e nós somos frutos de nossa linguagem, nosso meio fala através de nós (e não o contrário), de modo que os assuntos de nossa arte são os assuntos de nosso universo.


E então atualizo a pergunta de Adorno: é possível ainda fazer arte após esse universo se tornar o mais visível colapso de nossa civilização, apresentando, diariamente, holocaustos diversos ao redor do mundo? É possível a pintura depois da guerra na Síria, do esfacelamento humano da Iugoslávia ou do massacre de Hutus por Tutsis em Ruanda? É possível a arte depois de um garoto de cinco anos prantear o assassinato do pai diante de si? É possível a dança depois das chacinas de nossa cidade, do assassinato de Marielle, de Chico Mendes e da irmã Dorothy? Depois da escravidão de nossos negros, da falência diária de nossos direitos humanos que nos chacina, estupra, molesta, assedia ou nos assalta todos os dias? É possível a música enquanto o machismo permanece ferindo mulheres, crianças, homossexuais, transgêneros, homens fora da curva? É possível a escultura durante nossa corrupção? É possível o cinema diante do nariz quebrado de professores a mando de políticos que nos agridem todos os dias? O teatro durante os assassinatos de profissionais de saúde que trabalham em áreas de risco?


A resposta é sim, é possível e necessário. E até mais que isso, pois arrisco dizer que, mesmo durante grandes tragédias, existem breves momentos de alívio proporcionados pela arte. Tanto que Picasso transformou a tragédia do bombardeio à cidade de Guernica, completamente destruída em 1937 durante a Guerra Civil Espanhola, naquilo que talvez seja sua pintura mais famosa, a obra homônima à cidade.


Há quem conte que um oficial alemão da SS nazista, ao ver o quadro no momento da vernissage perguntou a Picasso “o senhor fez isso?” ao que ele respondeu “não, foi o senhor”.


A ideia não é modificar a arte, mas nos modificarmos para perceber aquilo que está à nossa volta. Nossa arte pode ser descompromissada (diretamente), mas nós não. Uma arte engajada, mas não engajada em partidos, como manda o senso comum - até porque o Partido Nazista tinha sua arte engajada -, pois isso é irrelevante, inútil e violento. Precisamos do engajamento com nossas coragens, com nossas dignidades que tínhamos antes do nosso colapso.


Não creio que a arte vá salvar nosso país, acho que já estamos todos condenados. Mas, mesmo diante da morte, a escrita ainda é possível. Ainda que, a exemplo desta coluna, ela se finde com poucas certezas, muito silêncio, nenhuma esperança ou conclusão além dessa: A arte após Auschwitz é uma barbaridade. Sejamos bárbaros. A civilidade não nos pertence mais.

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