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  • Foto do escritorPaola Benevides

vida (e morte) de imigrante na irlanda


Nem só de boas notícias sob um céu de arco-íris vive a nossa ilha verdejante. E enquanto seres humanos povoarem esta Terra, que de plana não tem nada, circularão crises, tensões e cisões as mais diversas, como bem sabemos. Inclusive muitos crimes ainda cometidos contra imigrantes, em pleno século XXI.


O fato é que um brasileiro, Thiago Cortes (28 anos), que trabalhava com delivery pelo aplicativo Deliveroo, foi tragicamente morto no início de setembro. Após ter sido atropelado na volta de uma de suas entregas, não resistiu aos ferimentos causados pelo motorista, que avançou o sinal vermelho em um cruzamento, deixando de prestar socorro à vítima. Atitude que poderia ter salvado sua vida.


Segundo relatos, o carioca pedalava pela área dos cais, no Norte de Dublin, região onde também foi encontrado um carro abandonado, o mesmo envolvido no incidente. As autoridades pediram acesso às câmeras de segurança para poder identificar os suspeitos: um menor de idade e outros três adolescentes alcoolizados, que vivem no subúrbio dublinense.


Discutir as razões do atropelamento, mesmo com inúmeros casos de estrangeiros que já sofreram ataques xenófobos seguidos por violência na mesma área da ocorrência, parece mera especulação. No entanto, atualmente, é difícil atribuir total confiança à Guarda Siochána, a polícia civil da República da Irlanda, cujas atribuições são de polícia judiciária e preventiva uniformizada, sob um princípio de: “se impor não pela força das armas ou em número, mas pela autoridade moral, conquanto servidores do povo.”


O essencial, portanto, seria compreender as dinâmicas sociais que determinam as desigualdades de tratamento entre nativos e imigrantes, principalmente estrangeiros de origem latino-americana ou ascendência africana. Isto porque fronteiras, nacionalidades e títulos de cidadania não passam de convenções sociais excludentes, instrumentos de dominação nas mãos dos mais poderosos.


Como seres humanos, estudantes e trabalhadores, devemos lutar pela superação de lógicas atrozes que, além de não solucionarem nossos reais dilemas, só intensificam essa diáspora entre classes, gêneros, raças e linguagens ao redor do planeta. Tal divisão se agrava quando, enquanto brasileiros em território irlandês, tratamos a comunidade dos “Irish travellers” (viajantes) pelo vocábulo pejorativo “knackers”, por exemplo, um grupo minoritário que geralmente vive nas periferias, recebe apoio financeiro do Governo e apresenta comportamentos antissociais. Os “young offenders” (delinquentes juvenis) são conhecidos por arrumarem confusão, inclusive, entre eles próprios e toda a sociedade irlandesa.


Apesar da grande revolta causada pelas leis frouxas quanto à discriminação racial e certo aumento da extrema direita por toda a Europa, a comoção pelo assassinato de Thiago uniu fortemente a comunidade brasileira aqui em Dublin. Foi bonito ver centenas de pessoas se mobilizando em meio à pandemia, tomadas as precauções sanitárias devidas, para uma passeata pela cidade. Além de clamar por justiça nas ruas, tanto o povo latino quanto os irlandeses passaram a arrecadar fundos para auxiliar os familiares da vítima e a discutir amplamente também sobre questões trabalhistas concernentes aos aplicativos de entrega de comida.

Curiosidade: Importante notar que um total de 535,4 mil estrangeiros vivem na Irlanda, entre dezenas de nacionalidades, em um país com 4,8 milhões de habitantes. Isso significa que pouco mais de 10% da população é formada por imigrantes. O último censo mostra que o Brasil está em sexto lugar. Na nossa frente, vêm cidadãos da Letônia (19,9 mil), Romênia (29,1 mil), Lituânia (36,5 mil), Reino Unido (103,1 mil) e Polônia (122,5 mil).


Dito isto, é urgente que intensifiquemos a educação de toda a população contra o racismo e a xenofobia, sem precisarmos exacerbar a cultura do ódio através de punições mais severas. Pelo contrário, devemos ampliar políticas públicas para o tratamento efetivo da drogadicção, promovendo atividades de prevenção e reinserção social desses usuários de baixa renda, jovens dependentes de drogas e sem-teto, haja vista a gravíssima crise de moradia que por muitos anos vem assolando a sociedade irlandesa, bem como afeta profundamente brasileiros que, assim como Thiago, legal ou ilegalmente, vêm buscar uma qualidade de vida melhor em outro país e se deparam com as condições precárias das acomodações estudantis, maus tratos, entre outras situações indignas.


Aproveito este espaço para deixar meus profundos sentimentos aos que morrem todos os dias nas mãos bélicas do preconceito, com a esperança de que esse pesar resista fortemente para pensarmos, em conjunto e criticamente, novas possibilidades fraternas, igualitárias e mais justas. Afinal, o que nos resta a não ser o poder da solidariedade entre todos os povos do mundo? Vamos em frente! Sigamos na luta.




PAOLA BENEVIDES nasceu em Fortaleza e é licenciada em Letras e pós-graduada em Linguística Aplicada (Tradução), pela UECE. De cantora e compositora em bandas independentes, transita entre performances em saraus, experimentos audiovisuais, midiáticos e místicos. Possui poesia e prosa publicadas em antologias, blogs, zines e revistas literárias. Cofundadora da @logoslanguageservices, é revisora textual, transcritora, tradutora e intérprete. Autoexilada em Dublin desde 2016.

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