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  • Foto do escritorPaola Benevides

SOBRE JAMES JOYCE, EXÍLIO E AFORTALEZAMENTOS

Atualizado: 4 de dez. de 2020


"Quando eu morrer, Dublin estará encravada em meu coração."


Em 1941, dia 13 de janeiro, morria James Joyce, aos 58 anos, na Suíça. O autor, que passou boa parte da sua experiência na Terra como expatriado, me fez questionar se eu chegaria à mesma idade inteira, também longe da pátria, por tamanha impaciência com o curso tomado pelo homem, caolho pelos erros recorrentes de leitura. Logo eu, mulher nordestina, malfalada por uma porção de imbecis mais competentes.


Felizmente, um bocado de nonsense verborrágico ainda disfarça o caráter genial de suas obras, cujas histórias pavimentadas por cenários dublinenses, servem de guia para não me perder entre veredas estrangeiras. Mesmo na falta de cognição para mapas, permeada por referências das belas-letras às marginálias, decido abrir meu livro ao mundo — tão quebrada quanto guarda-chuva em tempestade de cinco minutos ou tão protegida quanto cu de bêbado adormecido em assento de trem por longas horas. Aqui é assim, pelo menos não tememos perder a próxima parada conversando transcendências com os loucos.


Embora não tenha logrado tanto tempo fora de meu país natal como Joyce, ainda assim carrego o peso da identificação maior com a Irlanda do que com este Brasil medievo, cuja proporção oceânica me fez desenvolver o trauma de nunca ter aprendido a nadar. Reza a lenda que, enquanto lá se vive, fica-se a boiar, esperando sempre por um farol, um mito, uma rajada de vento na baforada de um anjo, um cão-guia, qualquer coisa que nos faça atravessar este momento distópico como se não detivéssemos a própria maestria. Até quem se põe contra a maré carece de remos firmes o suficiente para a persistência na luta.


As ruas serviriam para quê, além da disseminação de pandemias, carnaval e pirraça de caras brancas pintadas? Foi-se o tempo em que o medo cavalgava onças. Macunaíma mandou lembranças! Tenho lamentado tanto a falta de memória da minha gente que, por vezes, me coloco no lugar da filha de um pai com Alzheimer, tendo que explicar repetidas vezes o que ocorre, na esperança de ser, enfim, compreendida. É amor que se desgasta pela relação abusiva mantida desde a Independência, à base de chibatadas e feijoadas, racismos, fascismos e dias santos. Dali saí correndo, bati as portas de casa, mas continuo esbravejando em minha própria língua-mãe, a quem devoto fluência ilimitada. Amém.


Saudades? Dizem que não se deve desdenhar das ancestralidades, por isso, tento acreditar em encarnações passadas. Sinto uma atração inexplicável pelas terras celtas desde a infância, quando ousava questionar sobre como uma ilha tão miúda poderia ser fértil assim em cultura, musicalidade e poesia. Ora, é justamente pela origem famélica que uma identidade subsiste, apesar de todas as restrições colonizadoras. Ao produzir sua arte em larga escala, seja por catarse na hora da dor ou puro dom de alma, Éire se faz guerreira, uma deusa gaélica embriagada de cerveja preta. Foi por ter me rendido às pints de Guinness em noites friorentas que, orgulhosamente, reavivo a luz do meu Ceará, na afoiteza de ter tramado tantos sonhos cantados e escritos entre a boemia de uma Iracema maldita, cartografando Centro, Fátima, Benfica, Guará e tantos outros mundos familiares.


Costumo associar a bravura do Nordeste à intrepidez da Irlanda, embora a beleza do meu mar percorra um solo mais agreste. Nasci em Fortaleza, capital que carrega, na raiz do nome e no lombo desse povo, uma grande coragem, bem traduzida por Euclides da Cunha na epopeia Os Sertões: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Haja Vida e Morte Severina para traduzir a imagem de um retirante em seus afortalezamentos. São muitas bagagens que devemos largar de mão sem, ao mesmo tempo, nos desprender por completo, pastorando com gosto, prestando atenção em todas elas.


Andamos sem tempo. Mas que deus teria coração a ponto de escrever uma bíblia em menos de 24 horas? Homero? Não. O homem é tão carente de macrocosmos que se ilude com a impossibilidade de criar maravilhas em pormenores. Menos Leopold Bloom, destinado à tragédia de ser um Ulisses moderno. Há quem maneje bem os fluxos de consciência e não permita iniciantes na sua Literatura. E é justamente nela que aprendi a mergulhar mais a fundo, sem que o frio me fustigue a pele carregada de sangue negro, latino, indígena, alienígena de qualquer definição que hoje melhor nos caiba. Estou fora, mas tudo isso muito me afeta, incomoda, destempera por dentro. Joyce costumava dizer que a história não passa de um pesadelo do qual se tenta acordar. E, por fim, ainda alerta:


"Eu irei lhe dizer o que farei e o que eu não irei fazer. Não vou servir àqueles nos quais não acredito mais, mesmo que se intitulem minha casa, minha cidade natal ou minha igreja: e eu tentarei me expressar [viver] da forma mais livre e completa possível [através da arte], usando em minha defesa as únicas armas que eu me permito usar — silêncio, exílio e habilidade."



PAOLA BENEVIDES nasceu em Fortaleza e é licenciada em Letras e pós-graduada em Linguística Aplicada (Tradução), pela UECE. De cantora e compositora em bandas independentes, transita entre performances em saraus, experimentos audiovisuais, midiáticos e místicos. Possui poesia e prosa publicadas em antologias, blogs, zines e revistas literárias. Cofundadora da @logoslanguageservices, é revisora textual, transcritora, tradutora e intérprete. Autoexilada em Dublin desde 2016.

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