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  • Foto do escritorNílbio Thé

Luzia, A Mulher que Morreu duas vezes (ou Do nosso suicídio coletivo)

Atualizado: 4 de out. de 2020




10.000 a.C.

A vida era difícil. A selva, a chegada das preguiças gigantescas. Feras. Encontrar comida não era fácil. Perder-se de seus convivas... O azar de ter se distanciado muito de sua tribo. A descoberta de frutos e plantas novas não fora o suficiente para segurar sua expulsão da aldeia por desrespeitar as forças dos deuses. A gruta que lhe serviu de morada era boa, não era quente demais de dia, nem fria de mais à noite. O lagarto que encontrara para seu jantar não estava bom como o da semana passada. Estava com um gosto forte. Mas era o que tinha, juntamente com alguma mandioca e outras raízes. A noite foi ainda pior que a caçada do dia. Dores fortes no estômago a deixaram em estado de agonia por dias até que ela não sentia mais dor... ela estava, sim, em seu corpo, mas não chegava à sua mente que pôde viajar e abraçar os espíritos encantados da natureza que a rodeavam e a tudo comandavam. Ela encontrou a paz.


1975 d.C.

Escavações encontram o crânio de uma mulher em Minas Gerais, Lagoa Santa. Muitos ossos antigos foram encontrados ali.


1998 d.C.

Demorou pouco mais de vinte anos para que descobrissem que aquele crânio tinha doze mil anos de idade, revolucionando tudo o que se supunha sobre a ocupação do nosso continente. A partir daí, Luzia ganha fama, mais até que sua descobridora, a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, e seus posteriores pesquisadores, o biólogo brasileiro Walter Alves Neves e o bioantropólogo argentino Hector Pucciarelli, que descobriram a idade de Luzia em uma análise laboratorial feita na Europa. A partir daí, Luzia ganha o estrelato.


2018 d.C.

No ano de 2018, Luzia tem outra morte. Uma morte simbólica, mas que beira o real. Consumida em chamas juntamente com diversos outros documentos importantes para a história brasileira, como a Lei Áurea, e história mundial, como sarcófagos, tronos de reis africanos, coleções de desenhos botânicos etc. Nas redes sociais, cada um com suas ilusões partidárias aponta o dedo para o partido político alheio em busca de culpados. Muito fácil não olhar para si nessa hora. Quando visitamos um museu pela última vez em nossa própria cidade? Não existe praticamente nada de original que possa ser dito sobre essa tragédia. Tudo é muito óbvio. Todos somos culpados. Culpados por nossas ilusões, nossa falta de ação, nosso excesso de utopias e falta de pragmatismo. O último presidente a entrar no museu foi Juscelino Kubitschek. O último. Sofremos da síndrome de adoração de defuntos aqui no Brasil. A pessoa morre e vira um santo. Foi assim com Tancredo Neves, Mário Covas e tantos outros que se repetem no anúncio da “reconstrução” do museu. O mesmo ocorre com um museu que muitos sequer sabiam da existência. Se pudessem, eles ressuscitariam até Dom Sebastião. Mas essa tragédia ainda renderá muito. As políticas culturais brasileiras são incipientes. Culpa do estado? Claro. Culpa da iniciativa privada? Também. Muitas postagens sobre a “polêmica” lei Rouanet foram feitas. Quem determina o que será patrocinado pela lei Rouanet, que usa dinheiro de renúncia fiscal, ou seja, dinheiro estatal, é a iniciativa privada. Se ela resolve patrocinar um show de forró ao invés de ópera ou museus é vida que segue. Temos apenas que aprender a conviver com quem acha que um palácio mereceu ser destruído por ser um símbolo da monarquia escravagista ou quem acha que quem vive de passado é museu. O passado está em nós. Precisamos apenas parar de ignorá-lo. Ou de inventá-lo. Precisamos encará-lo de frente pois ele se repete a todo instante. Antes que vejamos fogo em nós mesmos por combustão espontânea para coroar o lento suicídio ao qual estamos nos aplicando há anos. Mas talvez exista uma chance de um revés. A notícia de que o crânio de Luzia foi encontrado entre os escombros é, como disse minha esposa Marise, uma inspiração de que a resistência faz parte das brasileiras desde sempre.

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