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Lições que aprendemos com a covid 19

Atualizado: 17 de nov. de 2020


Comunidade de via férrea em 1918 na pandemia de gripe espanhola. Vintage Space/Alamy

Escrevo esse texto como um cientista, um cientista privilegiado. Tive o privilégio de estudar com pessoas que hoje trabalham na linha de frente das pesquisas sobre a covid-19.


Esse texto nada mais é do que um apanhado de informações coletadas em conversas com especialistas da área de virologia, inflamação e imunidade. O tema mais recorrente nessas conversas são os aprendizados que tivemos desde o começo da pandemia. Entre eles, temos uma lista dos nossos preferidos. Antes de mais nada, é preciso lembrar que essa doença simplesmente não existia um ano atrás. Em termos de ciência, nossos avanços, ainda que pequenos, são incrivelmente rápidos como nunca antes se viu na história. Fruto de um esforço de pesquisa conjunto a nível mundial. Uma dessas descobertas importantes foi o período de latência de até duas semanas, assim como no HIV, o período assintomático é uma vantagem para o vírus. Foi por essa característica que a contenção do vírus falhou sistematicamente, já que não se consegue medir o espalhamento do vírus pela manifestação dos sintomas.


O problema é que os rastros de aparecimento dos sintomas não refletem a presença atual do vírus, apenas aonde ele chegou há duas semanas. Dessa forma, separar os que já estão doentes não elimina a contaminação por completo, apenas atrasa um pouco. Por isso a aposta defendida pela OMS era de atrasar a propagação. Ganhar tempo, deixar que a ciência trabalhe.


Outra lição aprendida é quanto à natureza da própria doença. Não é apenas uma doença pulmonar, trata-se de uma infecção sistêmica que apresenta outros sintomas e outros tipos de manifestações além das que foram apresentadas inicialmente.


Descobrimos que não é simplesmente uma doença terrível para idosos e pessoas com outras doenças (mais uma vez sou obrigado a traçar um paralelo com os grupos de risco da AIDS). Hoje o número de mortos ainda é maior entre pessoas acima dos 60 anos, mas o número de internações de casos graves cresceu muito na faixa etária entre 30 e 40 anos. Esse detalhe fica ainda mais importante quando pensamos em outro fator diversas vezes ignorado, as limitações logísticas.


Você deve ter ouvido falar na "guerra contra a covid-19"(sic). Pois bem, do ponto de vista logístico estávamos terrivelmente despreparados para essa guerra. O mundo todo correu para comprar máscaras e respiradores, sedativos para os pacientes que seriam entubados, novos leitos de UTI. Mas as prateleiras do mundo esvaziaram muito rápido, e diante do cenário de escassez assistimos uma disputa desigual dos recursos. Isso basicamente significa que se não há recursos para atender todos os casos graves, pessoas que poderiam sobreviver com tratamento adequado acabam morrendo. Mais uma vez a ideia de achatar a curva parece uma boa maneira de salvar vidas, afinal se o número de casos graves por semana estiver dentro da capacidade de atendimento dos hospitais, o número de mortos seria minimizado não é mesmo? Claro existe um peso econômico nisso, mas estamos falando de prioridades aqui, ou deveria ser. O fato é que a experiência do confinamento pela metade feito no Brasil cobrou um preço muito caro, até o momento que escrevo mais de 119 mil mortos*. Mas afinal valeu a pena confinar as pessoas e esperar pela ciência?


Bom hoje já temos estudos com vacinas em estágios avançados de desenvolvimento. Lembrando que a vacina em si não seria uma solução definitiva. É que assim como a gripe o corona vírus é um vírus de RNA ou seja ele possui uma capacidade de mudar tão rápido que vacinas se tornam ineficazes em pouco tempo. Uma campanha de vacinação anual é um desdobramento muito mais realista do que uma injeção que dure para a vida toda. Mas além da vacina outros avanços foram feitos. Um que me orgulho muito em citar é o projeto do soro anti-covid-19. Me orgulho por ser um trabalho da ciência brasileira e me orgulho demais por ser o trabalho de um grupo no qual trabalham algumas pessoas que conheço.


A ideia é produzir anticorpos em cavalos para tratar pacientes humanos assim como já fazíamos (e ainda fazemos) para picada de cobra o que remete ao fato de que pode até existir muita gente no movimento antivacina, mas ainda não existe um movimento contra o soro antiofídico. Os resultados iniciais mostram que os anticorpos produzidos por cavalos são 100 vezes mais eficientes do que anticorpos humanos.


Essa pesquisa não tem a pretensão de criar sozinha um mundo onde a covid-19 não seja um

problema, mas pode fazer uma enorme diferença quando aplicada a pacientes em estado grave. Inclusive está aí outro aprendizado. Descobrimos que o tratamento precoce com corticóide nos casos mais leves não é recomendado, mas pode salvar muitas vidas quando administrado nos casos mais graves. Se você leu até aqui e está se perguntando onde foi parar a cloroquina nesse texto, saiba que em relação a isso e a todas as medidas anticientíficas tomadas até aqui pelo nosso governo, tudo o que tenho para dizer é que acho espantoso descobrir como as frases de Caetano Veloso escritas há tanto tempo continuam atuais. Deixo elas aqui para que reflitam: “ou então cada paisano e cada capataz, com sua burrice fará jorrar sangue demais nos pantanais nas cidades caatingas e nos Gerais?”


Não é à toa que todos ou quase todos os filmes de tragédias naturais que você já assistiu começavam com cientistas emitindo alertas que eram ignorados. Tomar decisões que vão contra o conhecimento cientifico é uma atitude irresponsável e essa talvez seja a maior lição cientifica dessa pandemia. A lição que já deveríamos ter aprendido a muito tempo, mais antiga que os versos de Caetano. Ciência não se rebate com opinião, ciência não se ignora, aqueles que o fazem estão condenados ao fracasso.



André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas.










 

*no dia que este texto foi ao ar o número de mortes ocasionadas pela pandemia de Covid-19 estava em 144.680.

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