Salvaguardando o maior acervo audiovisual da América do Sul, a Cinemateca Brasileira é uma instituição pública responsável pela preservação e divulgação da produção audiovisual brasileira. Seu trabalho essencial percorre desde a coleta, catalogação e difusão, até áreas voltadas à pesquisa, estudo e ressignificação das obras audiovisuais.
Seu acervo conta com cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotografias, roteiros, cartazes, livros, entre outros. Entre os exemplos de material disponível estão os roteiros originais de Glauber Rocha, os filmes da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, as primeiras imagens da Rede Tupi, enfim, um patrimônio de valor inestimável.
Como reforço da nossa memória audiovisual, visitar a Cinemateca Brasileira deveria ser um passeio obrigatório a todo(a) brasileiro(a), ao menos uma vez na vida.
Localizada na Vila Clementino, na Zona Sul de São Paulo, a Cinemateca vive, em 2020, a sua pior crise, e os problemas vão muito além da situação de pandemia, que impossibilita a visitação das pessoas.
As dificuldades se iniciaram em 2013, quando uma intervenção do Ministério da Cultura destituiu a diretoria da Cinemateca, retirando sua autonomia operacional. De lá para cá, a Cinemateca vive um cenário constante de enfraquecimento institucional.
O descaso da Secretaria do Audiovisual do antigo Ministério da Cultura (MinC) desencadeou, em 2016, o quarto incêndio sofrido pela instituição ao longo sua história, no qual mil rolos de filmes antigos foram perdidos, situação tratada com total desconsideração pelas autoridades.
Tivemos, em fevereiro deste ano, mais um caso de desrespeito à cinemateca: Em enchente que danificou 113 mil cópias de DVDs, a Secretaria do Audiovisual se absteve totalmente das responsabilidades e esta situação, inclusive, nunca sequer foi comentada pela ex-secretária da Cultura, Regina Duarte, atualmente cotada por Jair Bolsonaro para coordenar a própria cinemateca.
Sem quaisquer medidas de proteção, falta de manutenção, atraso no pagamento dos funcionários e repasse nulo do Governo Federal para que a cinemateca sobreviva, a instituição, que corre o risco de ter cortada a energia elétrica por falta de pagamento, passa por seu pior momento. Sem cuidados técnicos e condições propícias de conservação, arriscamos perder a totalidade do nosso acervo, uma deterioração da nossa própria memória coletiva e social.
Foi divulgado, em 15 de maio, um abaixo-assinado intitulado “Cinemateca pede socorro”, com assinatura de diversos profissionais do setor audiovisual, como cineastas, produtores, críticos, professores, estudantes, curadores, programadores e colaboradores, o texto reporta o total sucateamento que vem sofrendo a instituição. No Twitter, o cineasta Kleber Mendonça Filho enfatizou a questão: “Isso é um pedido de socorro no pior momento dessa instituição que cuida da memória do Brasil”. O diretor estadunidense Martin Scorsese também manifestou apoio e indignação e cobrou explicações sobre o caso.
Além de ser uma figura central na fundação da Cinemateca, o crítico e historiador do cinema Paulo Emilio Salles Gomes reforçava sua concepção de Cinemateca voltada uma educação para o cinema. Ocorre que hoje, muito pelo contrário, o que vemos é um governo que não tem projeto para a cultura, e declara uma guerra cultural contra quem tem. Além de deixar morrer os corpos, levando adiante sua necropolítica, também pretende matar as almas.
No site da Federação Internacional de Arquivos Cinematográficos é possível ver vários vídeos de apoio à Cinemateca Brasileira.
As cinematecas são, geralmente, um local de encontro, um museu, um ponto turístico, motivo de orgulho da população do país. No México, por exemplo, a Cinemateca vive lotada. Em Bogotá, a Cinemateca foi, em 2019, lindamente restaurada. Por aqui, o audiovisual tenta sobreviver. Que dias melhores venham para a Cinemateca Brasileira!
Jéssica Frazão é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".