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Foto do escritorKah Dantas

COMO A LITERATURA ME SALVOU DE UM RELACIONAMENTO ABUSIVO


Confesso que, ao planejar o lançamento do meu primeiro livro, Boca de Cachorro Louco, para o começo do mês de dezembro, há quase quatro anos, não tinha me ocorrido que, alguns dias antes, em 25 de novembro, seria celebrado o Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher. Essa data marca um conjunto de ações para dar visibilidade e conscientizar as pessoas a respeito desse problema cujas estatísticas, infelizmente, só aumentam. E ela também contribuiu bastante, à época do lançamento da primeira edição do meu livro, para a promoção do meu relato em forma de obra literária, um conjunto de textos que reúnem as mais diversas e doloridas impressões que tive, durante e depois, de um relacionamento no qual sofri violência física e psicológica. E, devo dizer, registrá-lo com o próprio punho não foi mais fácil do que vivê-lo.



Primeira edição de Boca de cachorro louco

Eu sempre gostei de escrever. Escrever para dar forma aos sonhos, às pequenas, grandes ou almejadas alegrias e, especialmente, às tristezas. Sim, as tristezas. Escrever para espantá-las e, depois de vê-las a distância, tentar entendê-las. Não foi diferente com o Boca de Cachorro Louco. Como eu mesma escrevi em algum lugar daquelas páginas, “A ode se transformou em um exorcismo poético [...]” e o enganado amor, ali de mãos dadas com uma espécie cega de paixão, deixou de ser para dar lugar ao medo e ao desprezo.


Segunda edição de Boca de cachorro louco

Minha gente, foram tempos laboriosos. Todos os dias eu morria pelo desamor daquele homem. E todos os dias eu o desejava mais perto de mim, como se sua ausência significasse não um recomeço, mas o fim de todas as coisas que valiam a pena. E demorou um bocado para eu perceber como uma das minhas cantoras favoritas não poderia estar mais errada ao afirmar que “ele me machucou, mas pareceu amor verdadeiro” (“he hurt me, but it felt like true love”, Ultraviolence, Lana Del Rey). Nunca pareceu, por mais que eu quisesse ter acreditado nesse tipo de migalha.


Antes de conhecê-lo, eu achava simplesmente absurdo que uma mulher permanecesse em um relacionamento povoado de agressões físicas e psicológicas, provocações, humilhações e por aí vai, porque me parecia que dar um fim nesse tipo desgraçado de união era a coisa MAIS ÓBVIA e FÁCIL a ser feita. Mas essa percepção ingênua e mesquinha só durou até eu mesma, depois de alguns anos, viver coisa parecida – por mais de um ano. Mais - de - um - ano. Então será que eu era uma sem-vergonha? Será que eu gostava de apanhar? Será que eu me sentia bem ouvindo as ofensas mais espinhosas e cruéis? Eu? Logo eu? Que me achava tão bonita, tão inteligente, tão segura, tão empoderada? Absolutamente não.

Aquele namoro me deixou doente.


E quebrada demais para dizer não.


Na época, eu tinha um caderno/diário onde escrevia sobre a minha rotina dentro daquele relacionamento (sempre achei o registro da minha vida importante), sobre como eu me sentia e o que eu pensava, sobre minha autoestima destruída, sobre o medo horripilante de perdê-lo, sobre as conversas com ele, os sonhos, os maus tratos pelos quais eu me julgava culpada, a incredulidade, as agressões que seriam sempre as últimas e a minha própria e estúpida obsessão com a ideia de que ele me amava muito e de que era por isso que... (não vale nem a pena terminar o raciocínio).


O resultado? Um retrato maravilhoso e fiel do meu encarquilhado estado emocional e do difícil caminho de aceitação e esclarecimento que precisei percorrer até que tivesse forças para finalmente entender que ELE ME BATEU, MAS NÃO PARECEU UM BEIJO.


Boca de Cachorro Louco tem aproximadamente 134 páginas de eventos dispostos de forma não linear, alguns dos quais eu me envergonho, outros dos quais discordo veementemente e muitos que me entristecem ainda hoje por representarem a perda sem volta de um tempo precioso da minha existência, tempo que tento resgatar através da esperança de que esse livro poderá ser útil a outras mulheres que, assim como eu, conhecem na pele (muitas vezes literalmente) o que é um relacionamento abusivo.


A escrita salvou a minha vida, seja nos registros poéticos que fiz através da minha visão conturbada e do meu coração sangrado, seja nas palavras duras e frias que encontrei para falar do que eu sentia, quando eu não tinha forças ou coragem de compartilhar com mais ninguém a feiura do que eu vivia. Graças a ela, posso dizer que sobrevivi e que hoje estou viva, contando outras e mais felizes histórias.


Despeço-me com esta bandeira que sempre carrego comigo: a arte salva. E ainda é capaz de fazer cicatrizar e curar as feridas que estavam abertas no momento do resgate. Que nos lembremos sempre disso.


Texto originalmente escrito em 2016, por ocasião do lançamento da 1ª edição do livro Boca de Cachorro Louco, para o Blog Escreva Lola Escreva.




Kah Dantas

Kah Dantas é cearense, mestra em literatura comparada, professora da rede pública de ensino e autora do livro autobiográfico Boca de Cachorro Louco (2016) e do livro de contos eróticos Orgasmo Santo (2020). Gosta de escrever, cometer o pecado da carne e comer docinhos.

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