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Foto do escritorBia Pankararu

Wiki-índio: O jeito preguiçoso e abusivo de se envolver nas pautas indígenas


Diante dos crescentes ataques aos direitos das populações indígenas no Brasil, tanto em questões territoriais, culturais e de afirmação, também é crescente a militância de indígenas em diferentes frentes de atuação e as redes sociais se tornaram uma ferramenta crucial de visibilidade, denúncias de injustiças e, principalmente, de fortalecimento da identidade étnica que resiste nos tempos atuais. As redes sociais podem ser um ótimo expoente das questões indígenas, mas também abrem portas de diálogos muitas vezes exaustivos e sem propósitos baseados numa curiosidade sem respeito e empatia.


Existem diversos perfis de pessoas físicas e de comunidades indígenas nas redes sociais onde, na sua maioria, servem como um canal de comunicação e fortalecimento em rede, buscando trocar e levar informação dos mais diversos campos - saúde e educação, arte e cultura - e produção de conteúdo específico sobre nossas vivências e realidades, na tentativa de levarmos de fato o nosso lugar de fala a quem queira conhecer a história pela narrativa de quem a vive. Hoje levantamos vários debates para além de demarcação e violação de direitos, levantamos a importância do bem viver e o respeito às diferenças, que são muitas, entre os povos e suas culturas, coisa que para pessoas não indígenas chega a ser uma surpresa: se deparar com as variedades e as complexidades dos mais de 305 povos que ainda resistem em solo brasileiro.


Diante de tanta diversidade e tanto assunto “novo” sendo amplamente divulgado e fomentado nas redes sociais, o interesse de não indígenas por perfis indígenas crescem de uma forma bastante expressiva. Para além do interesse nas questões ambientais e climáticas, nossas culturas, costumes e tradições também são de interesse de simpatizantes da causa indígena, o que, para nós, é um grande avanço, exceto quando esse interesse vem acompanhado por pensamentos e posturas colonizadoras, onde não indígenas se sentem à vontade para abordarem esses perfis como forma de descolonização instantânea e imediata, como se seguir perfis indígenas fosse o suficiente para somar de verdade com as pautas levantadas por nós. Claro que acompanhar nossas narrativas é um grande passo em busca de fortalecer nossas populações, mas o problema não está em acompanhar, está em fazer de um perfil na rede social sua principal fonte de informação e de aprendizagem, usando o direct, caixa de mensagem e privado como se o indígena que está do outro lado fosse obrigado a dar uma aula particular sobre questões indigenistas a qualquer hora do dia e qualquer dia da semana.


Acervo Pessoal. Povo Pankararu.

Eu, por exemplo, administro o Instagram Povo Pankararu, no qual levanto questões sobre meu povo, desde a exaltação e valorização de nossa cultura e tradição até nossas lutas pela garantia e afirmação dos nossos direitos e denúncias de ataques como os incêndios criminosos ocorridos em outubro de 2018, logo após o segundo turno da eleições presidenciais. Iniciei o perfil principalmente como meio de denunciar os constantes ataques que meu povo vinha sofrendo por posseiros e as violências racistas na região até os desmontes estruturais governamentais que atormentam todos os povo indígenas dos país, assuntos pesados e de muita dor para serem levantados constantemente. É notável como a tragédia sensibiliza muito mais que a beleza existente nos povos, então comecei a publicar nossos rituais, danças e contar um pouco mais sobre nossas crenças, religiosidade e hábitos numa tentativa de valorizar também o que é belo. Percebi que parentes de outros povos se inspiraram no perfil e começaram a criar perfis de seus povos e exaltarem suas tradições, assim como crescia nossa representatividade nas redes sociais, também crescia o interesse de não indígenas em querer aprender mais sobre, mas de uma forma muitas vezes abusiva.


São constantes as mensagens na minha caixa de entrada de pesquisadores, repórteres, estudantes, professores e curiosos para tratar dos mais diferentes temas e as mais diversas demandas, desde “ajudar” em criações de teses acadêmicas até perguntas desnecessárias do tipo “em que estado fica o território”, “vocês são índios de verdade? Não sabia que tinha índio no Nordeste, só na Amazônia.”. Esse tipo de abordagem parece inocente pra quem escreve, mas é uma agressão para quem recebe. A forma como nos dirigimos a pessoas que vivem uma realidade e uma cultura diferente da nossa deve ser feita com o mínimo de respeito.


Pesquisadores que usam nossos conhecimentos ancestrais para desenvolver teses acadêmicas que nunca chegam de fato ao conhecimento geral dessa população não fazem nada mais do que se apropriar de forma injusta em benefício próprio, ou seja, colonizadora. Repórteres que procuram perfis indígenas para desenvolver matérias, que nos procuram com tom de urgência pela notícia, com tom de estar nos fazendo um favor em colocar essa história em seus jornais e sites, que não respeitam ao pé da letra a forma que colocamos nossas histórias e sempre colocam suas opiniões e conclusões pessoais sobre um assunto que não é do seu domínio, estão usando uma abordagem colonizadora. Muitas vezes fico sabendo por terceiros sobre matérias e reportagens produzidas sobre o meu povo nas quais o repórter não se dá nem ao trabalho de nos enviar a matéria concluída.


Essa postura de achar que estamos nas redes sociais à disposição para saciar as necessidades de quem quer trabalhar o tema, é o que costumamos chamar de wiki-índio, que nada mais é que fazer uma pesquisa com um ou mais administradores desses perfis como se fôssemos uma caixa de busca de informação. São muitos estudantes, desde o ensino médio ao ensino superior, que nos acionam como fonte para seus trabalhos e chegam até nós sem ter feito o mínimo, como pesquisar onde estamos localizados geograficamente. Propostas de projetos e pesquisas são constantes, mas quando digo que somos um território no sertão de Pernambuco, a desistência... “Não sabia que era tão longe... Mas você pode indicar mais alguém?”. Quando não, pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, dos mais diversos estados que procuram páginas de indígenas que estejam em destaque, mas não conseguem olhar para as questões indígenas que estão ali, do lado, na sua cidade, no seu estado. É muito mais eficaz procurar somar forças com as populações que estão mais próximas de seus campos de atuação do que traçar uma cruzada pelo país por uma população mais distante. Parece até que quanto mais difícil, maior a satisfação em se trabalhar o tema.


Existe uma síndrome de bem feitor que é perpetuada no imaginário coletivo, onde não indígenas em nome do “quero poder ajudar” acaba sugando tempo, conhecimento e energia de indígenas que estão em constante batalha e, no fim, essa “ajuda” não passou de um alimento pro ego e pra curiosidade alheia.



Acervo Pessoal. Povo Pankararu.

Não quero dizer com isso que não queremos pessoas não indígenas entrando em contato com nossos perfis, pelo contrário, queremos cada vez mais fortalecer nossas redes e somar mais parcerias em nome do bem viver de nossas populações. O que quero levantar é como, de fato, podemos nos ajudar de forma objetiva, clara, concreta, sincera e real.




Abordar um perfil pra uma mensagem de apoio, de fortalecimento e encorajar nossas lutas é muito importante, abordar nossos perfis pra matar uma curiosidade que seria resolvida com uma busca no Google, não. Buscar parcerias, propor matérias, lives, pesquisas pela rede social sem antes fazer um pequeno dever de casa, sem antes olhar ao redor e tentar enxergar realidades mais próximas, é perpetuar uma postura de invisibilidade a quem está perto, pesquisar um pouco antes é um exercício real de otimizar nossas forças, tanto a força de quem se propõe a ajudar as causas indígenas quanto a força daquele indígena que, muito provavelmente, já tem suas próprias demandas e projetos fora das redes e, por último e não menos importante, sempre que possível remunerar o conhecimento de quem está lhe fornecendo, afinal, visibilidade não paga boleto e nosso tempo não tem preço, mas pode ser sim valorizado como um trabalho.


Antes de abordar um perfil indígena, é importante ter a consciência que a rede social é uma ferramenta de luta e visibilidade, onde, por trás de cada perfil, existem homens e mulheres, mães, pais, profissionais, que não vivem de redes sociais, não são militantes de internet e não estão à disposição a qualquer momento, para além da internet. Estamos em constante militância pelo simples fato de existirmos e resistirmos há 520 anos de invasão, violências e violações de direitos primários. Estamos em estado de luta e esperamos de verdade que cada vez mais os não indígenas somem forças conosco, mas somar forças de forma respeitosa, não absorver um conhecimento que não levará a nenhuma mudança real.



BIA PANKARARU atualmente é técnica em enfermagem de saúde indígena no Polo Base Pankararu, além de produtora cultural e militante LGBT indígena.


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