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  • Foto do escritorSandro Sperandei

o custo do negacionismo


O Globo

Existem alguns pontos interessantes na narrativa do Governo Federal sobre o combate à pandemia de COVID que eu gostaria de explorar.


Segundo dados oficiais, o governo já gastou mais de 500 bilhões de reais no combate à pandemia. E ele tem se vangloriado desse feito como o governo que mais “investiu” na saúde desde sempre. O mesmo governo também se vangloria de não ter fechado nem mesmo um botequim e, portanto, não é responsável pelo desemprego crescente. E esse mesmo governo também afirma que não é possível dar um auxílio aos trabalhadores num valor que seja capaz de mantê-los em casa. Particularmente, acho muito pouco provável que qualquer parlamentar, ministro ou similar, no Brasil, seja capaz de viver com um salário mínimo durante alguns meses. Muito menos com os 600 reais do auxílio inicial e é impossível que alguém sobreviva com 150 reais.


Mas o meu ponto aqui é como essas três situações estão interligadas e resultam de uma mistura de ignorância e viés político presentes não só na cabeça do presidente, mas de (quase) toda a classe dominante do país.


Primeiro, o gasto com saúde. O que tem sido feito não pode ser chamado de investimento, pois investimento é algo que se faz com antecedência, esperando um retorno futuro. Hospitais de campanha não são investimento. Mesmo a compra desesperada de ventiladores mecânicos não deve ser considerada como investimento, uma vez que foi feita para atender uma demanda emergencial (muitas vezes com preços acima do usual). Sim, esses equipamentos poderão ser utilizados após a pandemia e poderiam ser encarados como “ganho de capital”. Mas comprar acima do valor numa quantidade que não foi planejada de acordo com a necessidade, projeções e outros fatores não pode ser considerado um investimento. Foram gastos necessários dadas as condições do país, mas não são investimentos. Não um bom investimento, ao menos. Se você sofre um acidente e precisa gastar dinheiro com internação, dificilmente vai chamar isso de “investimento em saúde”.


Grande parte desse chamado “investimento” foi aplicado em insumos e outros itens que já não existem mais. Ou seja, são gastos e não investimentos, como o governo quer fazer parecer. E que fique bem claro: para salvar a vida dos brasileiros, poderia (e deveria) ser gasto até muito mais! Dinheiro se recupera, vidas não! E aí é que está o ponto! O discurso do governo e seu “painel da vida”, assim como de muitos senadores da base aliada durante a CPI, é de que mais de 16 milhões de vidas foram salvas. É um número impressionante! Mas a sua interpretação está errada. A infecção pelo novo coronavírus não é obrigatória, de modo que o termo mais correto seria "infectados" ao invés de "curados". A Nova Zelândia, por exemplo, relata menos de 3 mil casos (564 casos/milhão de habitantes). O Vietnã, com quase 100 milhões de habitantes, teve apenas 16 mil casos (164 casos/milhão). Se analisarmos esses dados a partir da premissa de "curados" vamos perceber que eles estão bem mal, já que curaram muito pouca gente. É uma questão matemática.


A infecção de mais de 18 milhões de brasileiros (86 mil casos/milhão de habitantes) é resultado das escolhas do governo federal não só no início, como durante todo o curso da pandemia. Sim! Outros entes também possuem sua parcela de culpa, como governadores, prefeitos, o legislativo e o judiciário. Mas a condução geral do país é atribuição do poder executivo federal, concentrado nas mãos do presidente. E se a condução geral não foi exatamente como ele desejava é porque alguns destes entes, esporadicamente, agiram contra a sua orientação, salvando algumas centenas (milhares?) de vidas.


Dessa forma, fica claro que se o governo gastou (e não investiu) mais de 500 bilhões no combate à COVID, esse gasto excessivo foi consequência direta das suas escolhas de combate. E isso é evidenciado pelo que ele tenta mostrar como marca de sucesso: o número de recuperados. Percebam, no entanto que só é possível ter um número alto de recuperados se houver um número alto de infectados. Soma-se a isso o fato de que os dados começam a mostrar que até ¼ dos recuperados apresenta sequelas, algumas duradouras, representando mais gastos para o sistema de saúde. E também que a sobrecarga do sistema causa desgaste extra dos equipamentos, levando a uma depreciação acelerada.


E se, ao invés de gastar todo esse dinheiro tentando “recuperar” os infectados, a opção tivesse sido gastar mantendo as pessoas em casa? A experiência da Austrália e Nova Zelândia mostrou que o fechamento de fronteiras, distanciamento físico e outras medidas não-farmacológicas são inequivocamente eficazes no controle da pandemia.

Sabemos, no entanto, que a Austrália voltou aos noticiários devido ao aumento dos casos ocorrido justamente após o relaxamento das medidas não-farmacológicas e ao não investimento massivo em medidas farmacológicas como vacinas (que deveriam ser combinadas às medidas não-farmacológicas) somando-se a isso o fato de o movimento antivacina ter uma expressão relativamente forte no país como podemos constatar nesta matéria da BBC. Mas a questão não é se espelhar em erros, mas em acertos: E se gastássemos mais nos auxílios, com fronteiras fechadas? Um, dois, três meses de atividade econômica prejudicada, com retomada gradual, mas com 50 mil casos totais e cerca de mil mortes. Será que o gasto extra com auxílios poderia ter sido equilibrado com a economia feita no tratamento? E parte desse gasto não retornaria na forma de impostos sobre o consumo feito com os auxílios? Talvez você possa argumentar que o gasto no tratamento também gerou retorno de impostos e que “daria na mesma”. Do ponto de vista econômico, talvez. Essa é uma discussão de visão política e econômica, favorecer a base ou o topo. Mas não existe comparação possível no que diz respeito ao custo em vidas! E essas, como dito antes, não são recuperáveis...








Sandro Sperandei


Brasileiro exportado para a Australia, Sandro é professor de Epidemiologia na Western Sydney University. Professor de Educação Física (UERJ) e estatístico (UERJ), mestre em Engenharia Biomédica (UFRJ) e doutor em Biologia Computacional e Sistemas (FIOCRUZ), é especialista em analise estatística e simulação de dados e realiza pesquisas em saúde mental e prevenção de suicídio.


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